«Pessoas deste grande mundo, por favor não fiquem em silêncio, eles vieram para nos matar.»
Nas curtas férias que fiz levei na mala o livro «Menina», escrito por Edna O’Brien, uma ficção a partir dos relatos das sobreviventes das 276 meninas raptadas pelo grupo jihadista Boko Haram na Nigéria, em 2014. O rapto de crianças para as transformar em combatentes-terroristas (no caso dos meninos) e em escravas (no caso das meninas) é uma prática corrente nos vários países em que este tipo de grupos armados fundamentalistas instalam o terror.
Ainda não tinha terminado o livro, tão difícil quanto interessante, com a capacidade de nos fazer imaginar o que é estar à mercê do fanatismo e dos padrões culturais em que as mulheres são continuadamente sacrificadas, quando Cabul foi tomada pelos taliban, em resultado da execução do acordo que estipulou a retirada das tropas ocidentais do País, um acordo negociado e assinado pela administração Trump, mas validada e executada pela administração de Biden, a par com os restantes aliados.
Desde a primeira hora, o meu pensamento cruzou o que estava a ler com a sorte das meninas e mulheres afegãs que acabaram de perder o pouco que conquistaram nas últimas duas décadas. É que apesar da propaganda inicial para acalmar consciências ocidentais, sabemos bem o que significa um taliban dizer que os direitos das mulheres serão respeitados dentro da interpretação que este grupo de extremistas religiosos fazem da lei islâmica. Tal como sabemos que, quando esteve à frente dos destinos do País, entre 1996 a 2001, impôs o uso da burka às mulheres e a obrigatoriedade de circularem em público acompanhadas, impediu as meninas com mais de 10 anos de estudarem e as mulheres de trabalharem ou apedrejou quem era condenado por adultério, sendo que uma grande parte das vítimas eram mulheres. Ainda que a vida das mulheres afegãs tenha continuado a ser muito difícil após o regime taliban ter sido deposto uma vez que o País continuou a registar crimes extremamente violentos contra mulheres, sendo que algumas foram assassinadas por terem empregos considerados desrespeitosos e outras tiveram de abandonar o País por correrem risco de vida. A vida das mulheres afegãs não tem sido fácil ao longo dos últimos quase 20 anos, mas nada se compara ao que que pode voltar a ser. O grupo extremista apresenta-se como sendo mais moderado do que há 20 anos, mas os relatos que chegam das cidades que já foram tomadas não enganam: desde logo, as mulheres foram informadas de que seriam substituídas por familiares nos seus trabalhos no espaço público e as meninas e mulheres solteiras devem ser «desposadas» por combatentes. Muitas das pessoas que foram agora encurraladas em Cabul já tinham fugido de outras cidades conquistadas e sabem o que significa a apregoada moderação para «inglês ver».
Nada disto surpreende. O mais recente relatório da ONU sobre Crianças e Conflitos Armados no Afeganistão (datado de julho de 2021) aponta os taliban como sendo responsáveis por uma grande parte da violência exercida contra crianças e jovens no Afeganistão. O rapto e recrutamento forçado destas faixas etárias (prática comum não só dos taliban também de outros grupos armados que atuam no País e até pelo próprio exército governamental agora desfeito) acabou, muitas vezes, no seu uso para ataques suicidas ou ações hostis contra as forças governamentais e que terminaram com a morte ou estropiamento destas crianças. O relatório refere que, durante este período, os taliban foram responsáveis pela maioria dos ataques feitos a escolas (as escolas para meninas foram intencionalmente as mais atacadas) e hospitais.
Em 2019, a ativista e jornalista afegã Neda Karger escrevia no blog do coletivo afegão «Free Women Writers», a propósito das negociações «de paz» que decorriam na altura entre os EUA e os taliban, que tinha testemunhado muitos crimes cometidos pelo grupo desde 2001 e não compreendia como era possível querer-se um acordo de paz apressado com um grupo de terroristas. Recorda que Cabul nunca deixou de estar sob ataque do grupo e testemunha que, nas raras vezes que ia a um restaurante numa data em especial, procurava no espaço uma zona onde pudesse esconder a filha de três anos caso ocorresse um ataque do grupo. A jornalista, que teve de sair do País em 2016, defendia que a paz não pode ser obtida a qualquer preço, que a paz não é possível quando quem negoceia não tem em conta os milhares de pessoas, crianças incluídas, que foram mortas nos ataques brutais perpetrados continuadamente pelos talibans ao longo dos anos. E lembrava que, ao mesmo tempo que o grupo negociava a suposta paz, persistia na matança de pessoas inocentes. Por tudo isto (e por tudo o que não coube aqui) é mais do que legítimo desconfiar dos clamores de moderação de um grupo que provou sempre desprezar profundamente os direitos humanos do povo afegão.
Percebe-se, assim, o pânico que tomou a população afegã perante a chegada ao poder dos taliban e a tentativa desesperada de muitas pessoas para conseguirem sair do País. Como sempre, serão as mais vulneráveis e pobres que não conseguirão, para além das que voluntariamente decidem enfrentar a besta: há mulheres políticas, juízas e artistas que se recusam a sair, mesmo sabendo que a probabilidade de serem mortas é quase certa, e há manifestantes que perderam a vida porque desafiaram os ocupantes rasgando a bandeira taliban e empunhando a bandeira do Afeganistão.
Malala Yousafzai, também ela vítima dos talibans paquistaneses em 2012, já manifestou a sua profunda preocupação para com as mulheres, as minorias (basta pensar nas pessoas LGBTI) e as pessoas defensoras dos direitos humanos afegãs. Nas negociações de paz nenhum destes grupos teve voz ou foi tido como fundamental para constar do acordo. Foram, são, e serão, danos colaterais de um xadrez político que teima em relegar os direitos humanos para último plano em nome de uma realpolitik que ultrapassa os limites da verdadeira humanidade.
São inúmeros os apelos das mulheres afegãs para que não nos calemos e não deixemos que o que se passa no Afeganistão caia no esquecimento. O título deste texto ecoa o apelo que a cineasta afegã Sahraa Karimi nos lançou nos últimos dias: Somos nós, as pessoas deste grande mundo, que não podemos ficar caladas. Sabemos que eles as querem matar. Façamos o muito pouco que este imperativo ético nos pede: exijamos das nossas autoridades, nacionais e europeias, que não se calem, que se mantenham atentas e façam parte dos grupos de pressão internacional para não permitir que a situação se torne ainda pior.
Não deixemos que o povo afegão caia no esquecimento, que as mulheres afegãs sejam silenciadas. É o mínimo.
«Em tempos fui uma menina, mas já não sou. Cheiro mal. Sangue seco e incrustado por todo o lado, e o meu vestido esfarrapado. Por dentro, estou desfeita.»
Edna O’Brien, Menina. Cavalo de Ferro, p. 11