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Bengaladas

Por que razão não investiu a capital da ilha numa sólida rede de transportes públicos que afastasse os automóveis do centro?

Notável político, historiógrafo e pensador do Portugal oitocentista, José Silvestre Ribeiro exerceu o cargo de governador civil do Distrito do Funchal entre 1846 e 1852. À data, tinha já a clara consciência do papel que o turismo terapêutico desempenhava na economia da ilha, o que o levou a promover um vasto conjunto de "melhoramentos" urbanos entre os quais se destacou a abertura da marginal Funchal - Câmara de Lobos. Era objectivo expresso da nova via servir "maioritariamente os estrangeiros doentes, que aqui vêm cuidar da sua saúde" para que tivessem "um passeio assaz extenso, plano e bem andamoso ao longo do mar, facilitando-se-lhes até o uso dos cómodos meios de locomoção que a aspereza das montanhas da ilha impede na sua máxima parte".

Numa cidade conhecida pelas fortes pendentes das suas ruas, onde os veículos com rodas eram praticamente inexistentes, tratava-se de um projecto inovador. Ia ao encontro das necessidades dos "doentes do peito", a quem os médicos prescreviam a caminhada em terrenos planos para que não se fatigassem. Infelizmente, a "New Road" – como lhe chamavam os ingleses – a primeira marginal da ilha, viria a tornar-se impraticável para os peões na segunda metade do século XX, quando a prioridade começou a ser dada ao automóvel. Aos turistas alojados nos muitos hotéis que ao longo dela se foram fixando, acabou por não restar senão um exíguo passeio que calcorreavam em fila indiana, entre plátanos e tropeços, a caminho do centro da cidade.

A criação de uma via automóvel de sentido único que abrisse espaço a um largo passeio pedonal, "plano e bem andamoso", que confortavelmente conduzisse os turistas ao centro, seria certamente a solução que Silvestre Ribeiro daria hoje ao problema, se o conseguíssemos ressuscitar. Imagino mesmo que, depois de ressuscitado, se lhe mostrássemos o Funchal dos nossos dias, quisesse obter algumas respostas: por que razão não investiu a capital da ilha numa sólida rede de transportes públicos que afastasse os automóveis do centro? Por que razão surgiram tão estreitos passeios nas estreitas ruas da cidade de intramuros se os automóveis, circulando à velocidade do carro de bois, as podem partilhar harmoniosamente com os peões? Por que razão fecharam tantas ruas ao trânsito automóvel e as atulharam de cadeiras, mesas e guarda-sóis tornando-as intransitáveis para todos?

Imagino-o hirto e sombrio, de cartola, sobre a sua Ponte Monumental, perguntando de olhos arregalados aos que ali se reuniram para o receber:

– "Para que serve aquela pista cor de pitanga onde não cabem carros nem passam turistas?"

– "É uma pista de bicicletas, Sr. Governador" – respondem todos em uníssono – "o veículo de baixas emissões que vai resolver o problema da mobilidade no Funchal e salvar o planeta!"

Vejo Silvestre Ribeiro, sem proferir palavra, avançar para eles de bengala em riste e fecho os olhos... Temos de lhe perdoar, era à bengalada que no seu tempo se resolviam muitos problemas de urbanismo.