Crónicas

Os sorrisos roubados no Afeganistão

O que me choca verdadeiramente neste volte face, é a falta de estratégia para garantir sequer um momento de transição ou de pelo menos assegurar que a barbárie não se volte a instalar nas ruas

Sorrisos. A nossa forma mais pura de mostrarmos que estamos felizes. Sorrisos que provavelmente nos próximos tempos não veremos estampados nos rostos da grande maioria das mulheres e crianças afegãs.

Mais uma vez caímos nos mesmos erros. Sempre ouvi dizer que tudo na vida é cíclico e se assim é, no Afeganistão voltámos à Era do terror. O que me choca verdadeiramente neste volte face, é a falta de estratégia para garantir sequer um momento de transição ou de pelo menos assegurar que a barbárie não se volte a instalar nas ruas. Em pleno século XXI, depois de todo o histórico conhecido sobre os talibãs, parece-me surreal haver ainda quem acredite na cantiga do bandido ou que mesmo desconfiando se refugie nela para legitimar uma retirada atabalhoada e a entrega de milhões de mulheres, crianças mas também homens à sua própria sorte.

Se algo mudou durante todo este tempo foi a inteligência no discurso dos extremistas. “As mulheres poderão continuar a sua educação e o seu trabalho nas áreas permitidas pela Sharia”, prometeu recentemente um dos líderes talibãs. Ora, a Sharia é a lei islâmica. No fundo o sistema jurídico que aporta um conjunto de normas derivado de orientações do Corão. O que nos mostram os factos que têm por referência os anos em que estiveram no poder e nas regiões por onde têm passado, a interpretação da Sharia é uma das mais rígidas e violentas. As pessoas que acabam de tomar o poder no Afeganistão, são em parte as mesmas que promoveram execuções públicas, apedrejamentos, amputações e punições com chicotadas. Ou seja, a intenção de mostrar uma aparente mudança e um discurso até em parte apaziguador e condescendente visa, apenas e só, convencer a comunidade internacional a não desistir da retirada, assegurando a estabilidade e acima de tudo a defesa dos direitos humanos.

É no entanto fácil de perceber que a realidade será bem diferente. Num movimento fundamentalista heterogéneo feito de pequenas células independentes, garantir que as palavras serão postas na prática é tarefa quase impossível ainda para mais quando sempre defenderam que as mulheres não podiam trabalhar ou estudar e que eram obrigadas a usar burca que as cobrisse na totalidade. Estamos por isso perante um regime que tem tudo para prosseguir o seu atropelo aos mais elementares direitos humanos. Crianças como as da imagem que deixarão de poder praticar desporto e de prosseguir os seus estudos ou jovens mulheres entregues a partir dos 12 anos a um casamento forçado. Veremos que capacidade e até quando resistirão as que não se vergam nem desistirão de exigir os seus direitos e a sua liberdade e até que ponto a comunidade internacional será sensível aos seus apelos. É muito triste assistir a toda esta história e ouvir os relatos desesperados de algumas ativistas. Será que não aprendemos nada? Também seria bom vermos figuras internacionais que dão a cara por movimentos como o “Me Too” fazerem-no como a mesma veemência por esta causa, uma vez que a sua voz consegue ter um impacto à escala global, mantendo-o na ordem do dia.

P.S. Enquanto isso há uma história que merece ser divulgada e amplificada. Uma espécie de aldeia do Astérix que vai resistindo. Em Panjshir (província afegã) há muitos anos que um conjunto de corajosos vai resistindo ao poder Talibã. O herói nacional Ahmad Shah Massoud, apelidado de Leão de Panjshir que nunca cedeu perante os soviéticos e que foi vítima de uma cilada por dois falsos jornalistas ligados à Al-Qaeda (que o assassinaram 2 dias antes do 11 de Setembro), construiu uma pequena comunidade mais moderada, assente em valores e direitos mais próximos do mundo ocidental. Agora é o seu filho e seguidor que promete lutar pela liberdade e apela aos seus compatriotas afegãos (que recusam a servidão) e amigos estrangeiros “ a juntarem-se a nós no bastião de Panjshir, a última região livre do nosso país, em agonia”.