Das ecodúvidas à crise climática
O aquecimento global é uma realidade. E somos responsáveis por ele. As consequências são más, vão ser cada vez piores e, a menos que consigamos agir rapidamente, vão tornar-se catastróficas.
Mas podemos resolver o assunto, podemos encontrar os remédios necessários porque ainda não é demasiado tarde.
Al Gore
Quando acreditamos que a ética do meio ambiente corre o risco de se desassociar da democracia, queremos afirmar que a convivência da árvore, do animal e do homem não deve ser promovida ao preço de uma visão anti-humanista do universo.
A ecologia, para uns, trata-se de uma ciência, para outros, de uma política, inclusive de uma nova visão global do mundo que poderia pretender substituir as grandes utopias em vias de extinção. Nesse sentido, a ecologia, politicamente nascida nos anos 60, tomaria hoje o lugar dos movimentos contestadores que marcaram a História do final do século XX. O que se deve pensar de tal interpretação da ecologia?
Que haja uma dimensão científica na preocupação com o meio ambiente, não se discute, embora os dados objectivos sejam bem mais controversos do que se costuma supor: a dimensão real dos perigos ligados ao “buraco na camada do ozono” permite debates acirrados, da mesma forma que as causas e a extensão do fenómeno conhecido como “efeito estufa”. Quanto ao aquecimento da Terra e à elevação do nível do mar que resultaria no derretimento do gelo dos polos, as opiniões mais autorizadas estão em perfeita contradição: segundo os dados e os modelos matemáticos de previsão elaborados pela própria NASA, é possível que o nível baixe, que se eleve ou que se mantenha. Tudo depende! Seria bom, portanto, dispor de um balanço mais definitivo sobre estas questões e algumas outras que agitam a imprensa com tanto vigor. Pois quanto maior a incerteza científica, tanto maior a propagação do dogmatismo entre os profissionais da ecologia política, que aproveitam a indeterminação dos dados para avivar o “grande medo planetário”, base da paixão democrática nessa questão.
Convém introduzir nuances e distinções, tamanhas são as contradições entre os diversos movimentos que reivindicam o mesmo amor à natureza. Nos países onde a ecologia se estruturou como movimento de opinião, três projectos, um reformista, um intermédio, outro revolucionário, se defrontam. As diferenças de óptica entre eles se enraízam para além (ou aquém) da política tradicional, em divergências quase metafísicas sobre a questão de nossas relações com o universo. Para o primeiro grupo, sem dúvida o mais banal por ser menos dogmático, menos doutrinário, parte-se da noção de que através da protecção ao meio ambiente é o homem que se trata de salvaguardar – quando preciso, até dele mesmo. O meio ambiente em si não tem valor intrínseco. Apenas, se for destruído, a própria existência ou pelo menos o bem-estar do homem podem ficar comprometidos. Trata-se por assim dizer de uma visão “humanista” da ecologia, antropocentrista, em que a natureza tem um papel indirecto – o centro é o homem. O meio ambiente é a nossa periferia, o que engloba, envolve o homem. A sua estrutura não tem, por si só, nenhum valor absoluto.
A segunda via vai um passo além. Ela se fundamenta no princípio de que não se deve apenas militar em defesa dos direitos do homem. De maneira mais global, deve-se também visar à ampliação do bem estar de tudo o que se encontra na Terra. Nessa linha de raciocínio, atribui-se um valor pelo menos moral a certos seres não humanos e aspira-se a um bem-estar de todas as espécies. Daí nasceu um movimento de “libertação animal”, segundo o qual todos os seres susceptíveis de sentir dor e prazer devem ser tratados igualmente. Homens e animais, portanto, passam pelo crivo das preocupações morais. O antropocentrismo já começava a ceder.
O terceiro grupo verbaliza a reivindicação de um “direito das árvores e das pedras”, ou seja, da natureza como tal, inclusive sua forma vegetal e mineral. Os princípios desta ecologia mais radical passam pela revisão do conceito de humanismo moderno: o “contrato social” dos pensadores políticos deve ser substituído por um novo “contrato natural”, no qual o universo todo se torna uma figura de direito. Não se trata mais de considerar o homem como o centro do mundo, e sim o cosmos, que, se necessário, deve ser protegido do próprio homem. O ecossistema – ou biosfera – passa a adquirir valor próprio, superior ao da espécie humana. A natureza, longe de ser apenas o palco de nossas actividades, deveria ser o objecto de um respeito estético, moral e jurídico.
Sendo assim, é a civilização ocidental inteira que caberia incriminar. Entregue ao consumismo desenfreado, ela conduziria de forma inequívoca à devastação da Terra.
O renascimento do sentimento de compaixão em relação aos seres naturais pode vir acompanhado de uma postura crítica da modernidade – designada, de acordo com a geografia e a época, como “capitalista”, “ocidental”, “tecnocrata” ou simplesmente “consumista”.
A oposição ecológica aos desmandos reais ou imaginários do universo liberal se faz por dois caminhos a partir dos anos 30: pela nostalgia e pela esperança. Nostalgia romântica de um passado perdido, de uma identidade nacional violada pela cultura sem raízes que caracteriza o mundo da tecnologia moderna. E esperança revolucionária num futuro mais promissor de uma sociedade sem classes. Os dois caminhos se encontram no desejo de produzir um homem novo, baseado num mito de uma pureza sem concessões.
Ocorre que a ecologia reformista se vê constantemente atropelada pelos discursos mais radicais nos quais o amor á terra, o ódio ao cosmopolitismo e ao universalismo – identificados com a americanização do mundo e o declínio do Ocidente – se misturam á vontade de acabar com a sociedade de consumo, á defesa da autogestão, da iniciativa popular.
Porquê este impasse? Em grande parte porque a ecologia tende a se estruturar em forma de partido político que tenha uma visão global. Ora, apenas a versão mais radical da ecologia tem uma visão mais global do mundo, enquanto a versão mais moderada tende a não passar de um grupo de pressão facilmente assimilado por partidos tradicionais. É nisso que reside o dilema do movimento ecológico daqui para a frente: política, a ecologia não será democrática. Democrática, ela tenderá a renunciar às tentações da “grande política”.
No entanto, Michael Shellenger no seu último livro “Apocalipse nunca”, há pouco saído, demonstra como o ambientalismo humanista acabará por triunfar sobre o ambiente apocalíptico, porque a maioria das pessoas no mundo desejam tanto prosperidade como natureza, e não natureza sem prosperidade. Só não se sabe bem como conseguir ambas. É que, embora alguns ambientalistas continuem a dizer que a sua agenda também conseguirá uma prosperidade mais verde o que os factos mostram é que o mundo orgânico, de baixo consumo de energia e alimentado por renováveis seria um mundo, não melhor, mas pior para a maioria das pessoas e para o ambiente natural.
“Embora o alarmismo ambiental possa continuar a ser um aspecto permanente da vida pública, ele não precisa de ser tão sonoro. O sistema global está em mudança. Embora isso possa trazer novos riscos, também trará novas oportunidades. Enfrentar os novos desafios exige o contrário de pânico. Com atenção, persistência e, atrevo-me a dizer, amor, creio que conseguiremos moderar os extremos e crescer em entendimento e respeito durante o processo.
Creio que, se tentarmos, ficaremos todos mais próximos do objectivo moral e transcendente que a maioria das pessoas, talvez até alguns ambientalistas apocalípticos, partilha: natureza e prosperidade para todos”.
De facto Michael Shellenger ama demasiado a Terra para tolerar a sabedoria convencional do ambientalismo.
E como diz o Papa Francisco na sua Carta Encíclica “Louvado Sejas”: “a Esperança convida-nos a reconhecer que sempre há uma saída, sempre podemos mudar de rumo, sempre podemos fazer alguma coisa para resolver os problemas. Todavia parece notarem-se sintomas dum ponto de rotura, por causa da alta velocidade das mudanças e da degradação, que se manifestam tanto em catástrofes naturais regionais como em crises sociais ou mesmo financeiras, uma vez que os problemas do mundo não se podem analisar nem explicar de forma isolada. Há regiões que se encontram particularmente em risco e, prescindindo de qualquer previsão catastrófica, o certo é que o actual sistema mundial é insustentável a partir de vários de pontos de vista, porque deixamos de pensar nas finalidades da acção humana: Se o olhar percorre as regiões do nosso planeta, apercebemos depressa que a humanidade frustrou a expectativa divina.”
Por isso, vão-se acumulando os avisos à humanidade de que estamos em imergência climática. Nos últimos dias, uma equipa de cientistas volta à carga para reafirmar que os sinais de vida da Terra têm vindo a piorar nos últimos meses e é urgente combater as alterações climáticas.
Neste sentido, para que as mudanças ainda possam acontecer, uma equipa de cientistas propõe grandes desafios para todos. Recomenda-se a necessidade de se estabelecer um preço global “significativo” para o carbono para que a descarbonização ganhe maior impulso. Aconselha-se uma redução gradual e até uma possível eliminação dos combustíveis fósseis e o desenvolvimento de reservas climáticas estratégicas globais para proteger reservatórios de carbono naturais e a biodiversidade.
“As medidas para aliviar a crise climática ou qualquer outra transgressão planetária não devem ser centradas nos sintomas, mas sim na causa: a sobreexploração da Terra”, escrevem os autores deste aviso. “Sem um plano para uma rápida descarbonização e investimentos de larga escala em soluções climáticas naturais, os indicadores das alterações climática continuarão a piorar”.
No aviso chama-se, ainda a atenção para a importância da educação climática nas escolas e no encorajamento para a acção climática dos alunos. E pede-se que todas essas mudanças sejam feitas numa colaboração global.
Philip Dufy, um destes cientistas, espera que o aviso chegue a governantes e cidadãos. “O propósito do artigo é dar ênfase à urgência do combate às alterações climáticas”, realça. A expressão “emergência climática” pretende suscitar acções comparáveis às que seriam tomadas em resposta a uma ameaça militar. Esperamos que o artigo aumente o sentido de urgência do público e dos líderes políticos”.
Se à lição a tirar da pandemia do Corona Vírus é a de que paixões fortes e política extremada conduzem a distorções da ciência, a más políticas, e potencialmente a enorme e desnecessário sofrimento. Estaremos a cometer os mesmos erros nas políticas ambientais?
No início desta semana, António Guterres (Secretário Geral da ONU) afirmava que “este é um alerta vermelho para a humanidade. Os alarmes são ensurdecedores e as provas irrefutáveis: as emissões de gases com efeito de estufa estão a sufocar o nosso planeta”, referindo-se ao relatório do Painel Intergovernamental para as alterações climáticas.
Resta esperar que o referido relatório dê um empurrão à conferência climática da ONU agendada para Novembro, em Glasgow, onde, em tese, todos os países deverão apresentar planos mais ambiciosos para se tornarem neutros em carbono até á segunda metade deste século.
“Há mais de três décadas, cito o comunicado de imprensa do referido relatório, que nos avisam sobre os perigos de deixar o planeta aquecer. O mundo ouviu, mas não escutou”.