Crónicas

E a vida segue

Não era assunto de menor importância e a minha mãe, que sabia de tudo pela telefonia, andava preocupada com as notícias

O centro de vacinação com uma fila de adolescentes a contornar o edifício fez-me lembrar o Campo da Barca por altura das matrículas, quando aquilo enchia por causa da BCG e era certo que se ia perder lá uma tarde só para a enfermeira ver o teste do braço ou a reacção do penso nas costas. Há 40 anos não havia negacionistas, nem movimento anti-vacinas e ou se tinha o boletim de vacinas em dia ou não se podia frequentar as aulas.

Mas os tempos eram outros e os números também e, à cautela, mandaram-nos testar e vacinar a todos antes de ir para escola espalhar o bacilo da tuberculose. Não era assunto de menor importância e a minha mãe, que sabia de tudo pela telefonia, andava preocupada com as notícias, até foi falar com a Vanda, que era enfermeira e tinha estado internada no sanatório. E sei que, depois disso, me deixou sozinha a guardar lugar no Campo da Barca. Lembro-me bem, até sei que a cor do vestido e da bandolete.

Foi a primeira vez que me senti quase adulta e, quando chegou a vez, entrei sozinha para mostrar o penso e tirar a radiografia aos pulmões. E depois esperei muito quieta, que tinha só 11 anos e a coragem fugiu-me depressa. Sem a minha mãe o mundo agigantava-se, hostil e desconhecido à minha frente naquele jardim com o rumor das vozes dos que ainda estavam na fila. Eles sim, eram grandes, adultos, eu era uma crisálida, nem mulher, nem criança, enfiada num corpo que começara a crescer sem pedir autorização.

Era como alguns daqueles que vi, na fila da vacina da Covid-19, mas sem o telemóvel. Eu, quando queria tirar uma dúvida ou fazer um trabalho para escola, tinha de ir à biblioteca ou pedir para consultar a enciclopédia Luso-Brasileira da minha prima Ana. Os meus demónios e pesadelos não sossegavam com uma pesquisa no Google e, para ver como era o mundo, tinha só o globo terrestre que o meu pai comprara nas Seleções. E mesmo esse limitava o conhecimento aos contornos dos países e dos mares. As paisagens, as cores das cidades e as gentes que lá viviam só os podia imaginar.

Sei que as pessoas da minha idade tendem a glorificar esse tempo onde tudo era mais difícil, onde ignorância e analfabetismo grassavam, tão cruéis como doenças. E a única vantagem vinha do facto de sermos novos, com o futuro em branco. E disso sinto falta, de ser nova, de ter todas as possibilidades em aberto, mas do resto não. Penso muitas vezes em todos os que se foram porque não houve maneira de os salvar. Nos que morreram de SIDA, na minha vizinha que sucumbiu ao tétano, nos meninos e meninas que, todos os verões da minha infância, desciam em caixões brancos para o cemitério e faziam as estatísticas da mortalidade infantil por não resistir à tosse convulsa e à difteria.

Uma vacina eficaz e eles estariam aqui, entre nós, e nenhum nós saberá alguma vez quantos artistas, escritores, cientistas se perderam, quantos homens bons as epidemias nos roubaram. E quanto a Covid-19 nos tirou a todos e àqueles miúdos de cabelos grandes e calças largas que querem apenas ter a vida como era dantes. Tal como não esqueci do vestido e da cor da bandolete naquele dia no Campo da Barco, vou guardar o que me disse uma adolescente enquanto esperava pela vez para uma vacina que lhe pode trazer as rotinas sem grandes sobressaltos: “é que nunca mais vou ter 15 anos”.