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Santiago, um convite à reflexão

O caminho tornou-se “um vício” para mim. Já lá voltei mais duas vezes entretanto, todas diferentes e marcantes à sua maneira

Ao longo deste ano de 2021 celebra-se o Ano Santo ou o Ano Jubilar em Santiago de Compostela. Tal sucede sempre que o dia 25 de Julho, dia de Santiago Maior, coincide com um domingo. O caminho de peregrinação a Santiago de Compostela representa uma expressão histórica da cultura europeia e constitui um verdadeiro pilar da identidade colectiva. Emerge destas peregrinações uma dimensão humana da paisagem e dos territórios que se reveste de um enorme significado decorrente da circulação de pessoas das mais diversas origens, unidas pelo mesmo propósito espiritual, resultando em novas vias de comunicação, aglomerados populacionais e desenhando novas realidades sociais, económicas e culturais.

Quando nos aventuramos pelos caminhos de Santigo descobrimos um país diferente, cultural, acolhedor, preenchido pela fé e percorrido por peregrinos de todo o mundo.

Todos os caminhos vão dar a Santiago de Compostela, numa viagem de fé de encontro consigo mesmo… um caminho de aventura e superação. O Caminho de Santiago está longe de ser apenas um roteiro turístico. Percorrer as estradas, subir montanhas e atravessar rios foi, e continua a ser, acima de tudo, um acto de fervoroso de fé e um desafio de superação física e mental. Além disso, todos sentimos a necessidade de encontrar o nosso próprio caminho.

Pelos Caminhos de Santiago, desde os tempos remotos até séculos recentes, circulou, cresceu, consolidou-se e foi partilhado muito do saber europeu, da arquitectura à literatura, das artes de cavalaria ao pensamento. O Caminho de Santiago é um concentrado de vida, repleto de metáforas, onde encontramos um pouco de tudo. Basta sabermos olhar e ouvir. Ler o que vivemos. Do esforço à recompensa, das tentações do atalho ao prazer de não nos desviarmos. Este é um caminho que nos devolve aquilo que tiramos de nós próprios, tempo de silêncio e introspecção, uma verdadeira lição e uma oportunidade cada vez mais serena de vivermos com menos para sermos mais.

Apesar de ter na sua génese um propósito religioso, os Caminhos de Santiago de Compostela revelam-se como uma espécie de tratamento para quem sente ser necessário repensar alguns aspectos da própria vida e existência. Ainda que sempre com um propósito muito individual. O sentimento é mutuo entre todos aqueles que escolheram chegar a Santiago a pé: o caminho transforma vidas.

Não existe apenas um, mas mais de cem caminho oficiais que levam a Santiago de Compostela.

Desde a descoberta do sepulcro do discípulo de Jesus na Galícia, cada viajante fez o seu próprio caminho, da porta da sua casa até Compostela. Algumas rotas e vias foram se tornando populares e transitadas por diversos motivos (segurança, facilidade de abastecimento), mas nunca puderam usar com exclusividade o título de Caminho de Santiago.

Em 1993, a UNESCO incluiu o Caminho de Santiago na lista de patrimónios mundiais. O mais popular é o Caminho Francês, que começa nos Pirineus e atravessa as províncias espanholas de Navarra , La Rioja, Aragão, Leão e Castela e Galícia. O segundo caminho mais percorrido é o Caminho Central Português. No entanto o verdadeiro Caminho de Santiago começa na porta da sua casa.

A primeira vez que fiz o Caminho de Santiago foi nos anos sessenta, com o meu Pai, que era um grande devoto de São Tiago. Não fazia a mínima ideia do que me esperava, do que seria ter imensos quilómetros por dia nos pés. Apenas confiei e deixei-me ir.

Apreciar a natureza do caminho e saborear a paz. Esquecer o dia-a-dia, por vezes sufocante, e termos tempo só para nós. Sentir muitos companheiros, peregrinos, rumo ao mesmo destino, tanto nos momentos de alegria, como nos de dor. Cruzar com peregrinos de várias nacionalidades e ouvir um pouco das suas histórias. Rumar apenar com o essencial às costas, sem pressas, sem horas marcadas, apenas desfrutar o caminho… Senti-lo! O chegar a Santiago e sentir que fomos capazes e que toda a dor e esforço valeram a pena. Foi fantástico! Como algo tão simples, tão desapegado de bens materiais pode ser tão enriquecedor?

Desde esse momento, o caminho tornou-se “um vício” para mim. Já lá voltei mais duas vezes entretanto, todas diferentes e marcantes à sua maneira.

O Caminho de Santiago é uma experiência única e inesquecível! O esforço de cada um de nós traz-me à memória os dizeres de Tolentino de Mendonça “A verdade é esta: a contemporaneidade já não se conta sem a recuperação da velha figura do peregrino. Aquilo que parecia como uma imagem perdida dos fólios e almanaques de antanho regressa à actualidade com uma capacidade de sedução absolutamente surpreendente. E mais: com uma peculiar capacidade de expressar o mapa interno das perguntas e das procuras, de relatar o mal estar e a sede por alternativas que se instalou em nós, de dizer esta forma repentina de caminhos, de silêncio e de sentido.

O termo peregrino deriva do latim, com duas hipóteses possíveis: Per ager que significa “deslocar-se através dos campos” ou Per eger, “circular para lá das fronteiras”. O que define o peregrino começa por ser assim uma espécie de extraterritorialidade escolhida, que pede claramente para ser lida de forma simbólica. Deixa-se a vida sedentária, a sede rotineira dos percursos e abrigos, para viver, durante um período determinado, sem domicílio fixo e sem outro ofício que o de caminhante, numa itinerância despojada e aberta. Relativiza-se a prisão de comodismos, necessidades, fatalismos e desculpas. E o seu coração abre-se ou pode abrir-se à revelação de um sentido maior.

É neste sentimento de quietude e andança, silêncio e ruído, solidariedade e altruísmo e de mensagens infindas, encontradas em todo o lugar, que o caminho se vai fazendo e o nosso destino se realiza, embora a falta de serenidade que por vezes ocorre também no caminho, por questões irrisórias, mesmo com a solicitude do perdão, deixa, como facto acontecido, marca, tudo, creio, por carência de escuta e discernimento, pois “É impossível compreender realmente os outros sem compreender a sua forma de pensar, e ao compreende-los deixar de amá-los”.

O Caminho de Santiago é de todos os que o querem fazer. Não é necessário ter uma crença específica, mas existe uma forma de o percorrer e não se chega ao fim como se começou: após a interrupção na nossa vida sedentária mas frenética, o enfrentar dos nossos medos e limites, tão frágeis, o silêncio de estar connosco próprios é inevitável pensar o que nos fez verdadeiramente falta “na mochila” para não desperdiçarmos forças a arrastar para morto…

A quem deseja fazer, pela primeira vez esta peregrinação emblemática, mas se assusta com os quilómetros, ou simplesmente, não sabe por onde começar é bom fazer uma leitura de preparação para ir mais tranquilo.

Para chegar ao fim do Caminho, o mais importante é fechar a porta de casa, ultrapassar a dependência dos gadgets, voltar a funcionar de uma forma quase medieval, seguindo setas e procurando indicações aqui e ali. No fim de tudo, corpo e espírito despem-se da aceleração do dia-a-dia e aceitam naturalmente o que corre, e o que não corre, como planeado.

É difícil traduzir em palavras tudo o que vivemos e sentimos ao longo do caminho, pois são vários os estados de espírito por que passamos. Ele é feito de espírito, de simplicidade e partilha, de momentos de força e de cansaço.

Nem sempre é fácil, mas depressa aprendemos a relativizar os problemas, pois as dificuldades desaparecem quando as encaramos como oportunidades de aprendizagem. Para mim, um dos pontos altos, foi quando chegámos ao fim e vimos cumprido o objectivo a que nos propusemos, é uma sensação brutal, uma descarga emocional muito forte e uma sensação de voltar de coração cheio.

Quando chegas, percebes que tudo valeu a pena. Que passaste por lugares lindos, que conheceste e conviveste com pessoas diferentes de ti. Que sim choraste, mas também sorriste e deste gargalhadas. Que viveste a experiência mais incrível de sempre. Que ultrapassaste as tuas próprias barreiras e testaste os limites! Que, afinal, podes viver com pouco. Que tudo o que atravessa o teu Caminho faz parte e que, felizmente, tu fizeste parte dele. Voltei ao caminho em 2008 com amigos e companheiros da Paróquia dos Mártires – Chiado. Fui em 2010 em jornada de fervor e gratidão a São Tiago e estou ancioso por regressar de novo ao Caminho. Talvez…

O Papa Calisto II instaurou o Ano Santo Jacobeu em 1126. A Igreja Católica prometeu o perdão de todos os pecados a quem peregrinasse até à tumba do Apóstolo durante o Ano Santo, o que é conhecido como “ganhar o jubileu”, o que acontece este ano.

O que faz os peregrinos voltar ano após ano? Fica o desígnio de regressar ao sacrifício, mas também a conquista de novas dimensões de conhecimento pessoal?

Portanto, caro leitor, aproveite este convite e Bom Caminho…