Tecni-color I
FOTOGRAMAS
Como grande parte das pessoas nascidas em Portugal na década de 1980, passei parte da minha infância em frente à televisão, televisão essa que até aos meus nove anos foi sinónimo da oferta de apenas dois canais – os públicos da RTP, ditos ‘canal 1’ e ‘canal 2’ –, e da coexistência de aparelhos de transmissão a cores com aparelhos de transmissão a preto e branco. A memória falha-me, mas arriscaria dizer que foi também precisamente por essa altura – inícios da década de 1990 – que o televisor a preto e branco lá de casa (que estava na cozinha e não na sala) deu definitivamente o “berro”, depois de várias ameaças, sendo substituído por um a cores. Refiro isto porquê? Porque de algum modo esse crescimento (também) num mundo televisionado, a cores, e ainda com a possibilidade de acesso ao VHS e a escolhas mais personalizadas nas lojas de aluguer de vídeo que então frequentava (e que do meu ponto de vista, se limitavam à secção de desenhos animados), foi também acompanhado por uma vincada visualidade a preto e branco. De que forma esta se distinguiu da mesma visualidade a preto e branco da geração precedente? Talvez a pergunta colocada aqui implique uma tentativa de resposta algo simplista ou redutora. Mas, ainda assim, arriscaria dizer que as crianças dessa outra geração não só cresceram muito menos em frente à televisão – a maioria das famílias não tinha então televisor em casa – como a sua experiência de acesso a um quotidiano televisionado, ao seu entretenimento, à ficção e aos conteúdos informativos e didáticos, se dava exclusivamente a preto e branco, reservando-se a cor para o cinema, aliás, para algum do cinema projetado em sala.
Ora, se essa minha experiência, que é geracional, não implicou um espanto da cor, visto ela estar então naturalizada, ela também possibilitou uma familiarização tácita com o que poderá anteriormente ter representado esse espanto e, logo, com o contraste entre ver a cores aquilo que os olhos se tinham habituado a remeter para uma escala de cinzentos. Dito de outro modo, a experiência da imagem em movimento foi mediada durante esses anos pelo meu acesso (inconsciente) enquanto espetadora a diferentes técnicas de produzir e transmitir imagens que enformaram diferentes tipos de visualidades (que também são) de ordem cromática. Um outro exemplo dessa diferença, dentro daquilo que seria já exclusivamente “a cores”: assistir às cores planas – mas a meus olhos tão profícuas e realistas – de uma emissão que dominou serões da televisão pública nesses finais dos anos oitenta e início dos de noventa, os Jogos Sem Fronteiras, e as cores brilhantes, saturadas, irreais (e por isso, a meu ver, anacrónicas), dos filmes com o sêlo “Technicolor”, por exemplo, dos então já clássicos Feiticeiro de Oz (1939), E Tudo o Vento Levou (1939), e mesmo de O Padrinho (1972).
Curiosamente, a percepção em relação à fotografia era diferente: a cor era já nessa altura rainha e soberana nas práticas fotográficas quotidianas, começando a habitar as práticas autorais artísticas e as impressões fotográficas expostas em museus e galerias de arte. A revelação de filmes a cores em rolo, normalmente da Fuji ou da Kodak, expostos na maioria das vezes em câmeras compactas de fácil manuseamento, era feita em praticamente qualquer loja de fotografia, havendo no mínimo uma por vila ou pequena cidade no Portugal de então – a qual incluía quase obrigatoriamente um estúdio de retratos. Para mim, a técnica fotográfica tinha um passado já longínquo a preto e branco e um presente a cores, presente esse que se teria iniciado provavelmente na década anterior à do meu nascimento, a de 1970, desconhecendo variações de outra ordem, provavelmente mesmo em relação ao tipo de suporte e formato dessa mesma técnica. Ou seja, achando que tudo aquilo a que chamamos fotografia consistia materialmente naquele rolo fílmico que se introduzia, desenrolava e se expunha à luz como que por magia, em aparelhos com manípulos e botões automáticos ou semi-automáticos. É sintomático talvez que apenas enquanto jovem adulta e já em plena era digital (ou quase) tenha tido conhecimento da panóplia de técnicas, processos e formatos que compõem a diversidade daquilo que de forma sintética, amalgadora (redutora?) chamamos de fotografia. E até mais especificamente, de fotografia a cores. Sobre a invenção da cor, referem Emília Tavares e Alexandra Encarnação num texto relativo a dois processos fotográficos e em mostra na seção de estúdio do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s: “As primeiras experiências para o desenvolvimento da fotografia a cores datam de 1868, através do contributo de Louis Ducos du Hauron (1837-1920), muito embora sem aplicação comercial ou industrial. Somente através do processo designado de Autochrome, em 1907, seria possível a comercialização de placas em vidro que utilizavam a tricromia, permitindo a sua utilização a nível mundial. Os irmãos Lumière congregaram com sucesso anos de investigação e experimentações, assegurando assim a produção das primeiras fotografias a cores de forma industrializada, até cerca de 1931.”
Reproduzem-se aqui dois autochrome do estúdio Vicente’s datados entre 1907 e 1920, provavelmente da autoria de Vicente Ângelo Gomes da Silva, que porventura terá sido auxiliado pelo pai, Vicente Gomes da Silva, Júnior, os quais retratariam deste modo respetivamente a esposa e nora, Maria José Bettencourt Gomes da Silva. Nesse sentido, (pela opção de retratar um familiar), e pela escolha em dispor e expor vários elementos inertes, estas algo elaboradas composições parecem ter um caráter experimental – como se o fotógrafo estivesse incerto em relação ao resultado final –, o que é tanto mais provável se considerarmos a exigência desta técnica específica de produção de cor, o autochrome, ao nível dos tempos de exposição prolongados e de uma rigorosa imobilização dos sujeitos/objetos fotografados de forma a se obterem bons resultados. Considerado isto, resta-nos assinalar que o desejo de cor e a sua concretização no acto fotográfico remontam (pelo menos) a finais do século XIX e inícios do século XX, e não às suas últimas décadas, como vagamente ainda se poderá supor.
Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.