Desavindos e infelizes
O poder não se disputa entre visões competitivas e conciliatórias do bem comum, mas entre impulsos opressivos, restritivos e absolutos
Como em tudo, convém ser justo. Os direitos, e sobretudo a experiência dos grupos historicamente discriminados levaram no século XXI um grande avanço. Na Madeira, ser gay, ou simplesmente diferente foi até ontem forma segura de ver as vazas perpétua e categoricamente cortadas pela sociedade. Depois de tanto discriminar, e da insanável dor da viragem na cara dos amigos, muitos recorreram a uma emigração pouco voluntária, ou se refugiaram estratégica e defensivamente junto de círculos tão unidos quanto marginais. “As coisas” eram assim. E se a chaga passou despercebida a quem a infligiu, é porque foi interiorizada por quem a sofreu, tantas vezes com o consolo perverso das drogas, do álcool, ou de uma eremítica, sofrida, e por vezes suicida solidão. Exagero? Eu também preferia não saber do que estou a falar.
Mas “as coisas” estão diferentes, até desde o meu liceu. Os homossexuais madeirenses assumem-se mais, e mais cedo. Geram ressentimento e anticorpos, mas vão tendo quem os acolha, receba e empregue, na manifestação última de juízo e liberdade de agir como se não importasse. Como efectivamente não importa.
A par deste progresso e da evolução de consciências, sucede alguma coisa de diferente. O mês de Junho – todo ele – foi dedicado ao Orgulho LGBTQ+. E assim os Estados, cidades, empresas, jornais e associações internacionais manifestaram-se, de bandeira arco-íris, contra a opressão. Mas uma opressão abstracta, cuidadosamente circunscrita ao mundo desenvolvido, selectivamente omissa quanto às barbáries que noutros lados se cometem em nome do partido e da religião. E assim a Hungria, que aprovou uma lei infeliz quanto aos conteúdos disponibilizados junto de jovens, foi acusada de violação de direitos humanos em pleno Europeu de futebol. Mas quem organiza o Mundial de 2022 é o Qatar. E jogam todos.
Fosse a questão apenas ideológica, e não estaríamos mal. Mas o Ocidente, e as grandes empresas especialmente, andam a cozinhar uma coisa mais perigosa e unilateral. Nos Óscares, por exemplo, só serão doravante nomeados os filmes com pelo menos um ator ou atriz principais de etnias não brancas, e o elenco secundário terá de ter pelo 30% de mulheres, LGBTQ+ ou pessoas com deficiência, numa manobra bem mais espartilhante da expressão criativa e da verosimilhança histórica do que a lei húngara. Critérios semelhantes são usados pelas grandes empresas, que já só fazem anúncios ou contratam serviços com um certo perfil de “diversidade” – o que não deve ser fácil na Noruega ou no Japão. Nos Jogos Olímpicos, corre uma discussão pouco equilibrada sobre a participação de mulheres transexuais nas provas femininas, onde beneficiam de vantagens óbvias e cientificamente comprovadas (como é evidente, ninguém levanta problemas com a participação de homens transexuais na prova masculina, sucede apenas que não chegam lá). De caminho, institucionalizou-se o discurso do “privilégio branco”, que não se satisfaz com a igualdade formal entre cidadãos, mas apenas com uma sujeição de sinal contrário às que sufocaram mulheres e escravos ao longo dos séculos.
Não é inocente. A associação entre identidade e mérito – “eu pertenço a determinado grupo ou etnia, e logo mereço recompensas, honras ou imunidades” – é o teste do algodão dos regimes totalitários. Que desta vez não nos chegam a partir da política, mas sobretudo a partir do dinheiro. Quando recorrem a este discurso radical, positivo e adversarial, pela mudança e contra os reaccionários, as empresas procuram a tracção e atenção das redes sociais, e fugir ao seu castigo. Mas procuram, sobretudo, chegar a um consumidor ligado, afluente, ocidentalizado, que vive e convive na internet, onde também faz os seus negócios e encomenda as suas compras. São eles o esteio do comércio global, e são eles os clientes das grandes empresas. O mercantilismo da virtude não é sincero, e é um cálculo como outro qualquer.
Um cálculo que não se ocupa de quem não risca. À sombra dos mais intensos meses de Junho e das acções afirmativas da igualdade, cresce uma tribo de descontentes. Pessoas anónimas, obscuras, esquecidas, que vivem sem importância num mundo sem importância, onde as luzes se acendem apenas a uma cor. Gostam da sua terra, da sua família, da rua onde as lojas e o comércio fecharam. Talvez obedeçam, arcaicamente, a uma Igreja ou um Deus. São perversamente nostálgicas. As suas predilecções, quando confessadas, são de pronto catalogadas como ilegítimas ou ignóbeis. Por elas não se agitam bandeiras, nem se definem quotas, mas nem por isso se sentem privilegiadas. Frequentam as vielas do esquecimento por razões mais antigas: são pobres, e para lá mais caminham. As empresas ignoram-nos, porque não compram. Mas votam. E vingam-se com o abono de Viktor Orbán, de Marine Le Pen, e de outros líderes autoritários que crescem pelo Mundo.
Eis o fruto mediático da revolução digital. O poder não se disputa entre visões competitivas e conciliatórias do bem comum, mas entre impulsos opressivos, restritivos e absolutos. Em nome de uma igualdade ou tradição simetricamente cegas, subscrevemos de cruz ao sectarismo. Acalentamos a ambição de nos eliminarmos uns aos outros, para perpetuamente ocupar um poder democraticamente efémero. Cidadãos desavindos e infelizes, desgraçadamente privados de se alegrarem e ajudarem no tanto que têm em comum.