O bom, o mau e o anti-herói
Pequenas histórias, breves encontros que, todos juntos, ilustram trinta meses de vida no mar
A 4 de Julho, os americanos celebram o Dia da Independência. Nós, no próximo Domingo, seremos felizes beneficiários do Dia da Libertação. Como se a liberdade nos fosse permitida e não devolvida. Com os habituais porta-vozes no banco de suplentes, António Costa foi a jogo para anunciar o alívio das restrições em três fases e ao ritmo da vacinação. Lentamente, apaga-se a chama da esquizofrenia securitária. Dos horários reduzidos que fomentam o ajuntamento de pessoas em restaurantes e supermercados. Da exigência de teste negativo a quem já tem a vacinação completa. De uma cerca a Lisboa que conteve as pessoas e deixou passar o vírus. Mais do que à normalidade, assistimos ao regresso da racionalidade.
O bom: Henrique Afonso
O pirata tem nome. Henrique Afonso. Deu a volta ao mundo, a bordo de um veleiro, em 923 dias. Numa belíssima entrevista ao Diário, Henrique confessa que voltou como foi. Exatamente o mesmo. Simples, humilde e pensativo. É isso que desarma no velejador. Henrique não tem uma grande epopeia para contar, mas tem pequenas histórias, breves encontros que, todos juntos, ilustram trinta meses de vida no mar. Um problema com o motor em Timor-Leste, a tormenta elétrica na África do Sul, o encontro familiar no Curaçau e a visita da polícia em Samoa. Mas a história de Henrique não é só dele, é também nossa. Dos emigrantes que o ajudaram pelo caminho e que permitiram que a “Sofia do Mar”, o veleiro da aventura, resistisse ao que o mar lhe lançava. Se no princípio era a ilha, como Tolentino escreveu, no final, ao acostar no Paul do Mar, Henrique regressou por si e pelos emigrantes que não podem regressar. Talvez por isso o pirata tenha dado a volta ao Mundo sem nunca sair de casa.
O mau: O Funchal e a água
Parece um jogo. De mau gosto, é certo. “Vai faltar água no Funchal, saiba onde”. O título de jornal, travestido de adivinha aquática, revela o ponto a que a governação municipal chegou. São tantos, e tão frequentes, os cortes de água que é necessário um mapa da cidade para saber se, ao chegar a casa, valerá a pena abrir a torneira. Até nisso os socialistas tratam todos por igual. Falta-lhe água em casa, mas também falta nos edifícios camarários. Não há, de facto, privilégios para ninguém. Depois da igualdade de género, a igualdade líquida. Se ficássemos por aqui, talvez, ficássemos quites. Na capital, a escassez de água é tão antiga como a rede que a distribui. O problema é que, no Funchal, a água fez-se política e a fatura mensal virou cartaz de propaganda. Não bastavam os boletins, os cadernos, os caderninhos, os cartazes e todo o entulho publicitário do qual o Funchal não tem o exclusivo, mas que pratica com refinada e repetida habilidade. Agora, descobriu-se uma nova planície para a banha da cobra municipal. Hoje, a fatura da água, amanhã as licenças de utilização, os alvarás de construção, os editais de trânsito. Nos cabeçalhos, nas notas de rodapé, no verso, na frente. Em cada documento camarário, uma oportunidade para o auto-elogio, uma hipótese para a defesa da honra. Não se trata, sequer, de saber de que lado está a razão no litígio entre a Câmara do Funchal e a ARM. Embora a Câmara tenha perdido todas as ações em tribunal sobre o assunto, não é esse o intuito desta crónica. O que inquieta na postura municipal é a disponibilidade para sacrificar o património da cidade numa desavença política. O que preocupa é a ligeireza com que se entregou como garantia, para serem executados, o tribunal judicial, o quartel dos bombeiros, a sede de um clube centenário. O que assusta é o à vontade com que se arrisca a cidade, como se fosse propriedade do presidente. Em vez de adivinhar o próximo corte de água, aceitam-se apostas para o próximo edifício municipal penhorado.
O anti-herói: Otelo Saraiva de Carvalho
Sem compará-los, escrevo sobre Otelo, o que escrevi sobre Marcelino da Mata. Julgar os homens do passado, à lupa do presente, garante condenação, mas não oferece penitência. Enquanto o julgamento contemporâneo de Marcelino convidava à autoflagelação nacional, o redescoberto heroísmo de Otelo é uma tentativa de branqueamento do que se seguiu ao 25 de Abril. Não se trata, pois, de julgar Otelo como herói ou terrorista, apenas de contar a história - a dele e a nossa - por inteiro. E podemos começar pelo fim da ditadura. É factual o papel que Otelo desempenhou na logística revolucionária do 25 de Abril. Mas atribuir-lhe o papel de homem providencial da revolução, é revelar um desconhecimento profundo acerca do contexto nacional e internacional que levou à queda da ditadura em Portugal. Mas quem louva a inegável coragem do jovem capitão Otelo, tem de reconhecer, também, o que se seguiu aos cravos. O desvario do COPCON, as detenções sem acusação, o confisco de contas bancárias, a tortura nas prisões, a hipótese admitida de uma democracia não-representativa em Portugal. Mais tarde, depois do arraso eleitoral por Eanes, as FP-25. As bombas, os assassinatos, os roubos, a esquerda revolucionária transformada em esquerda delinquente. Tudo isto aconteceu. E em todos os momentos, Otelo foi figura central. Ao contrário do que se tenta impor, é possível falar disto sem ser um detrator do 25 de Abril. Da mesma forma que o Estado Novo não permite reabilitação, os tempos loucos do PREC e das FP-25 não podem admitir normalização. Otelo foi um dos que contribuíram para a liberdade, mas ao contrário de Salgueiro Maia, Melo Antunes e Jaime Neves, nunca acreditou nela.