A “libertação”
Já podemos ir para férias mais descansados: o nosso Primeiro anunciou a “libertação total” lá para fins de setembro. Ninguém perguntou nem objetou nada: presume-se que estaria a falar do Covid. Não sei o que mais admirar: se o tom messiânico da proclamação, se a capacidade de transformar em propaganda recorrentes declarações públicas. Vimo-lo no soporífero debate “estado da nação”, a preparar a pátria para a resiliência da recuperação, obviamente a fartos tiros de bazuca: como dizia um colunista, ele já pode “ir ao banco” e ninguém mais o segura. Libertada a sociedade portuguesa lá para o outono, há que avançar com o remédio para as feridas destes anos: saúde, educação, habitação, digitalização, descarbonização, enfim, a roda dos milhões vai rodar, e isso irá trazer a outra libertação, aquela do maldito défice em que o país tem estado atolado. Já vimos este filme do dinheiro a rodos, mas no passado tinha outras versões: fumos da Índia, ouro do Brasil... Mas agora é a sério, e é esse otimismo, leve e brilhante como o verão, que tem sido anunciado todos os dias aos autarcas em estado de campanha, nos palanques aonde sobe o líder do PS para a sua proclamação, dali descendo, minutos e milhões depois, já no fato de primeiro-ministro. Que fazer? Politicamente, remodelar não faz parte da conversa, apesar das olheiras dos ministros. E já que não é possível “cancelar” os televisivos painéis da má-língua, então que se avance na pregação da bazuca: um futuro sorridente já desponta no horizonte da “libertação” ...
Desconfio sempre destes anúncios messiânicos, na maioria das vezes dramaticamente desmentidos pela história, em fundas pegadas de sofrimento e lágrimas. Para não irmos mais longe — lá até aos escombros do “socialismo real” onde jazem milhões de cadáveres (pouco crentes e mal agradecidos aos amados líderes que só queriam libertar o povo) — basta lembrar algumas memórias (pouco ufanas) da nossa libertação primordial: menos de dois anos depois, o “dia inicial inteiro e limpo” era pasto da revolução obrigatória das “justas lutas” pela “democracia popular”, visando adaptar ao arcaico solo lusitano a carcomida utopia da “sociedade sem classes”. A história desse tempo já foi escrita e reescrita em múltiplas versões. Ficou-nos a democracia e a liberdade: a muito custo e com alguns acidentes de percurso, foi essa conquista a verdadeira “libertação”. Mas, agora que morreu o principal estratega — herói e vilão — das “conquistas revolucionárias”, não se pode branquear o sangue irremediável de quase duas dezenas de vítimas das ações terroristas das FP-25. É que, por detrás dos amanhãs dourados que depois se convertem em pesadelo, estão sempre utopias messiânicas — religião laica? — que fazem tábua rasa da realidade histórica, da natureza humana, e da complexidade dos processos sociais, para (re)construírem o “homem novo” a golpes de ideologia. E ainda dura: agora, os cubanos “libertados” querem libertar-se do “libertador”! É certo que, em português suave, estamos longe dessas utopias falhadas e falidas. Mas, é preciso um olhar atento às democracias que — já sucede na velha Europa — trazem no bojo (ditadura partidocrática?) os novos efeitos perversos da crise: a única libertação bem sucedida é a da casta dirigente que, sempre em nome do povo e reciclando os arranjos de poder, fica a “tutelar” o nosso destino, a democracia e as liberdades. Obviamente, uma bazuca nunca vem só...
(A crónica faz pausa em agosto — talvez escrever mesmo na areia. Boas férias!)