Leve como o verão?
O texto desta semana adivinha-se leve como se quer a primeira quinzena de agosto, época geralmente associada a férias, praia e calor. Não partisse ele de duas imagens fotográficas aparentemente estivais: a primeira, da autoria de Gino Romoli, foi tirada no Funchal na zona balnear do Reid’s Palace Hotel (atual Belmond Reid’s Palace) e data entre 1930 e 1950; a segunda, de João António Bianchi, Visconde Valle Paraíso, é da praia do Porto Santo e está datada como sendo simplesmente anterior a 1928, ano da morte do fotógrafo.
Se as fotografias têm diferentes cronologias retratando à primeira vista realidades distintas e por isso parecem pertencer a épocas distantes, porém, a incerteza da datação não exclui neste caso que possam ter apenas alguns anos de diferença.
A primeira reflete uma sofisticação que no contexto madeirense em particular estaria praticamente circunspecta à realidade turística e cosmopolita dos hotéis do Funchal, não deixando eventualmente de projetar o contexto de vida do próprio Gino Romoli – talentoso fotógrafo, homem das artes pictóricas, gráficas e manuais, decorador e barman de origem italiana, que em meados da década de 1930 se fixa na Madeira passando a exercer funções na hotelaria e, mais tardiamente, nos setores do turismo e bordados. A exuberância e indiferença das poses em relação à captura fotográfica e a elegância da moda (reflexo aqui já da própria presença do bikini, peça que parece revolucionar ou pelo menos simbolizar as possibilidades de liberdade e visibilidade dos corpos das mulheres no espaço público na segunda metade do século XX), inscrevem-se numa cultura balnear que começou por ser de elites (sobretudo internacionais), que começa a ganhar expressão nas décadas finais do século XIX e, no âmbito da qual, a fotografia seria uma prática comum ou não particularmente rara. Creio não incorrer em erro ao afirmar que a Madeira (ou melhor, o Funchal e seus hotéis) a par talvez da zona do Estoril, foi a primeira zona turística balnear do país, com o Algarve a ser perspetivado enquanto tal somente a partir da década de 1950.
Mas atente-se à segunda imagem. Também aqui o fotógrafo estaria de costas para o mar e em frente a um grupo que desta feita está mais distante e é composto por crianças (e adolescentes?) na sua maioria sobre uma estrutura de pedras em ruínas, contígua a uma pequena casa (provavelmente, um abrigo de material de pesca) e, à exceção de um menino em primeiro plano, atrás de um cabrestante ou sarilho – mecanismo manual que servia para retirar embarcações da água.
Pode-se supor que o verão destes gaiatos não era marcado por uma pausa de lazer estival, mas sim pela regularidade da ocupação da costa pelos ofícios da pesca, atividade que garantiria uma subsistência nada farta, provavelmente mal permitindo alimentar as bocas de (tantos) miúdos e respetivos graúdos. O mar, a areia e o sol do Porto Santo eram elementos omnipresentes e tipificantes das formas de vida dessas populações, sendo ainda signos de dureza e esforço, que de algum modo (para elas e por elas) exigiam ser ultrapassados no labor do dia-a-dia. E muitas das imagens de ocupação de zonas costeiras do país, até pelo menos a década de 1950, denotam precisamente estes outros modos de vida, de sociabilidades e economias, quer pela presença de artefatos de trabalho, quer pelos corpos mais vestidos (mas menos sofisticadamente vestidos), quer pelas poses (pelo menos) aparentemente mais encenadas e conscientes em relação ao ato fotográfico que aquelas da imagem de Romoli. Também elas são de algum modo signos de uma simultânea intimidação e fascínio pela técnica fotográfica por aqueles que com ela estavam menos familiarizados, e de um período estival (de sol, praia e areia) que estava longe de ser leve, como aquele do meu próprio imaginário.
Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s