A política e o conflito
1. Disco: porque mais melancólico, o conselho de uma amiga, caiu como ouro sobre azul. O projecto Ghostly Kisses, de Margaux Sauvé, é de uma beleza quase indescritível. O que se encontra no Spotify são uma série de singles e EP’s, que nos dão a ideia de a franco-canadiana ter uma necessidade urgente de criar e publicar. Vão ouvir. A consistência e a musicalidade são de nos tirar a respiração. Obrigado Carla.
2. Livro: “A Democracia — História de Uma Ideologia”, de Luciano Canfora, é um livro imprescindível para quem gosta de estudar questões da política. Temos a democracia como um conceito assente e desconhecemos-lhe o processo histórico. O livro conduz-nos, numa jornada enriquecedora e esclarecedora, que começa na Grécia antiga e vem até aos nossos dias. Mesmo não concordando com algumas das perspectivas do autor, é uma obra de enorme relevância.
3. Já aqui deixei dito que a política não é mais que um sistema social de resolução de problemas, facilitador da tomada de decisões e da resolução de conflitos. E, no entanto, não é essa a percepção que dela temos. Diariamente somos confrontados com o inverso. A política parece arrastar problemas, impedir a decisão, porque as partes não se põem de acordo, e ser potenciadora de conflitos.
Na semana que passou, tivemos dose a dobrar que comprova isso: os Debates do Estado da Nação e da Região. Quem detém o poder é o dono das soluções e quem está na oposição só vê problemas. Isto é o resultado de um sistema que está errado, logo à partida, porque divide as partes entre vencedores e derrotados, quando a democracia não é isso que pretende. A polarização, o desentendimento entre as partes, extrema posições e impede o diálogo e o entendimento. E isto é tanto pior quanto mais importantes são as questões a resolver.
Não é disto que precisamos. Há que encontrar saídas para este círculo vicioso que não nos leva a lado nenhum. A esta circularidade que só nos prejudica e impede o desenvolvimento. Os “vencedores” não recebem uma certificação que lhes ateste serem os donos da razão. Quem ganha, e exerce o poder, tem a obrigação de saber ouvir e dialogar. As eleições democráticas não são um atestado de despotismo, uma certificação de quero, mando e posso.
Exige-se, a quem anda na política, a capacidade da “nuance”, do diálogo, do entendimento, de modo a atender às necessidades e interesses de todos. Uma atitude aberta que induza à curiosidade de ouvir e tentar perceber o que os outros têm para propor, a capacidade de ser criativo, empático, disruptivo, colaborativo, de maneira a que se aceitem diferenças e perspectivas diversas.
Todos somos únicos. Vivemos em conjunto porque nos aceitamos, porque aceitamos, nos outros, entendimentos, crenças, ideias, opiniões, necessidades, valores e interesses diversos. A nossa força tem de residir precisamente aí: na diferença e na aceitação que dela temos. A nossa democracia será sempre deficitária, se não assente no princípio da aceitação. Se fossemos todos iguais, isto seria uma enorme sensaboria e não tínhamos necessidade da política porque desejaríamos todos o mesmo.
O que vemos todos os dias, especialmente nestes que correm devido às eleições que se avizinham, não é nada disto. O desentendimento, o insulto, a incapacidade de ouvir, o não aceitar a divergência, melindrar-se com a crítica, é o pão nosso de cada dia. Os que exercem a política, os que têm palanque para passar o que pensam, dão dela uma ideia errada. Ajudam a criar um conjunto social onde todos vivemos, onde os adversários se tornam inimigos, onde grassa a ameaça e a perseguição, onde a mentira se torna culto. A dignidade, a rectidão, a ética e a moral são coisas de somenos, quando deviam ser a base de tudo.
Caíram na política por interesses enviesados e não calculam, sequer, que existem processos eficazes onde a diversidade e a desigualdade não resultam obrigatoriamente em divisão social e incompatibilidade política. Têm da política uma visão simplista, a preto e branco, um daltonismo que nem lhes permite entender os entretons dos cinzentos.
São muito poucos, entre os quais me incluo — perdoem a imodéstia — que procuram combater esta lógica distorcida das coisas. Precisamos de critérios, de ciência. Foi Michel Foucault quem apontou para a ciência, principalmente as sociais, como fonte de conhecimento e de poder, a partir da qual se podem adoptar políticas em nome da racionalidade esclarecida.
Precisamos urgentemente de políticos que consigam entender haver outros processos mais inclusivos e colaborativos, baseados em interesses diversos capazes de construir e gerar novas opções, porque ouvem, avaliam critérios, buscam alternativas criativas, constroem consensos, acalmam sentimentos e irritabilidades, resolvem disputas e maximizam resultados positivos.
São estes os construtores de democracias maduras onde os princípios, instituições e regras, associados à prática democrática, servem para administrar conflitos e divergências. Só a democracia nos oferece procedimentos nos quais as decisões podem ser tomadas sem o risco de que a perda de uma batalha política signifique infortúnio e derrota. A democracia, como sistema de tomada de decisão política, transporta um sistema de gestão de conflitos em que os resultados não são conhecidos à partida, mas as regras do jogo fornecem um espaço seguro para dirimir argumentos e chegar a compromissos.
Infelizmente, não é o que vemos nos areópagos da política, onde predomina a arrogância, o insulto, o desrespeito. Temos muito o que mudar para termos uma verdadeira democracia adulta e saudável.
4. Miguel Albuquerque disse, na semana passada, que se fosse preciso “aprovava mais três Savoys”. Interessante ter um secretário-geral do seu partido, um seu braço direito, que quando se jogava um ping-pong da “culpa-é-tua” contra o “não, o culpado és tu”, entre o PSD e o PS, escreveu o seguinte, criticando volumes e tamanhos:
“Já não bastavam os 14 pisos acima da Avenida do Infante e outros 5 pisos abaixo dessa avenida!
Já não bastava uma altura de fachada de mais de 52 metros acima da Avenida do Infante!
Já não bastava uma área de construção total que ultrapassa os 140.000m2 (leu bem, 140.000m2!), num terreno de apenas 27.000m2!”.
Já na altura se esquecia de referir que quem aprovou tudo aquilo, todos aqueles “já não bastava”, foi o presidente do seu partido que, se dele dependesse, “aprovava mais três Savoys”.
5. Embora ande na política há muitos anos, a maior parte deles em funções menores ou mesmo nenhumas, desde que me atirei de cabeça para a Iniciativa Liberal, desenvolvi uma angústia pré-eleitoral que me chateia.
Tem tudo a ver com a burocracia. Recolher informação para pedir às juntas os certificados de eleitor (informação a que o Tribunal, tal qual qualquer um de nós, pode aceder na “net”), chatear os candidatos para preencher uma ficha de candidatura que podia, e devia, ser preenchida online. Montar um calhamaço com o “fichame” todo e ir entregar tudo no tribunal da comarca. Que tenho a certeza que passa os olhos no processo escolhendo uns pares de fichas para ver se está tudo conforme e marimba-se para o resto.
E isto angustia-me… muito.
6. Deixou-nos um homem bom. Uma referência de vida. Um amigo da família, daqueles que mesmo sem estar, estão sempre.
A Virgílio Pereira o fato do partidarismo servia-lhe mal, pois senhor do que pensava, gostava de consensos e de verticalidade. Na política, ao contrário da esmagadora maioria, nunca teve inimigos, teve adversários. É nisso um dos maiores exemplos da nossa história recente.
Hoje há festa no céu quando se juntar à minha mãe, ao José António, ao Fernando Nascimento, à Ana Margarida.
Chegou ao céu um cardeal.