Crónicas

Pediu cereja regional?

Têm sentido, ano após ano, os efeitos cada vez mais devastadores das secas prolongadas e da desregulação dos períodos de chuva

Não sei se já experimentou uma bola de berlim da pastelaria Doce Cereja, no Jardim da Serra. São particularmente deliciosas as que são recheadas com doce de cereja. Nada mais natural, já que o Jardim da Serra é conhecido pela deliciosa cereja que é produzida nas suas terras. No entanto, quantas cerejas comprou este ano que tivessem sido produzidas na Região? Há quantos anos começou a perceber que a oferta regional deste fruto tem vindo a ser gradualmente menor, ano após ano?

No âmbito do trabalho parlamentar, o PS-Madeira deu entrada, já há alguns meses, a uma proposta para a criação de uma Estratégia Regional para a Fruticultura de Altitude.

A fruticultura temperada ou de altitude diz respeito às produções frutícolas que dependem de um determinado número de horas de frio que ocorrem em altitude para frutificarem. Na Madeira, produzimos vários frutos que dependem destas condições: a cereja, a castanha, o pêro, são exemplos de frutos cuja produção – e até mesmo qualidade – dependem destas condições. E o concelho de Câmara de Lobos é pródigo e reconhecido pela produção de muitos destes frutos.

A proposta que demos entrada vai ao encontro das orientações europeias para a Política Agrícola Comum que constam do «Plano Estratégico para a Agricultura e Desenvolvimento Rural 2020-2024». Articula-se também com a «Estratégia de Biodiversidade para 2030 – trazer a natureza de volta às nossas vidas» e com a «Estratégia do Prado ao Prato – para um sistema alimentar justo, saudável e respeitador do ambiente».

Certo é que os nossos agricultores e agricultoras, mesmo que não conheçam estes documentos orientadores, têm sentido, ano após ano, os efeitos cada vez mais devastadores que as secas prolongadas, a desregulação dos períodos de chuva, as novas pragas, os incêndios e aluviões provocam nas suas colheitas, cada vez mais escassas.

Na verdade, já tomamos estes fenómenos como parte integrante do nosso quotidiano; mas são na verdade um aviso «de que o nosso sistema alimentar está ameaçado e deve tornar-se mais sustentável e resiliente.» Este alerta consta da Estratégia do Prado ao Prato e é facilmente verificável a cada estação, quando aguardamos determinados produtos frutícolas regionais. Estes fenómenos são também responsáveis pelas alterações que temos vindo a sentir nos últimos anos, em que temos cada vez mais dificuldade, enquanto consumidores e consumidoras, em encontrar produtos a que nos habituamos a ter em abundância, como é o caso da cereja, da castanha, das maçãs regionais, entre outros. Esta dificuldade começa a montante, com os agricultores e agricultoras a não conseguirem responder ao desafio das novas pragas e das alterações climáticas que inviabilizam a comercialização dos seus produtos, causando-lhes prejuízos avultados e que perigam novo investimento para a colheita seguinte. No Jardim da Serra, por exemplo, são cada vez menos as cerejeiras que conseguem sobreviver a estes fatores. No Curral das Freiras, a produção da castanha também enfrenta sérias dificuldades.

Mas esta não é uma dificuldade sentida apenas na Região; por essa razão, consta da Estratégia do Prado ao Prato a aposta europeia na transição para sistemas alimentares sustentáveis. No entanto, tal só será possível se existir uma «(…) abordagem coletiva que envolva as autoridades públicas a todos os níveis de governação (…), intervenientes do setor privado em toda a cadeia de valor alimentar, organizações não governamentais, parceiros sociais, o meio académico e os cidadãos.»

São cada vez mais os agricultores e agricultoras que procuram soluções alternativas para salvaguardar as suas colheitas dos efeitos dos problemas já elencados e tentam fintar dessa forma a adversidade e o prejuízo. No entanto, as orientações das políticas regionais têm, na nossa perspetiva, insistido em soluções que são cada vez menos preferenciais no que à política agrícola comum diz respeito. E conforme consta da Estratégia que apresentaremos na Assembleia, se cabe aos intervenientes do setor apostar na transição para um sistema alimentar mais sustentável também cabe às autoridades públicas fazê-lo através da adoção de políticas públicas que orientem, apoiem e incentivem nesse sentido.

Na proposta da criação de uma Estratégia Regional para a produção de culturas frutícolas de altitude, o PS-Madeira propõe que se repense o caminho que a Região tem seguido e propõe o inverso do que tem sido promovido pelo Governo Regional.

Defende-se que, como forma de minimizar alguns dos efeitos que têm feito perigar as nossas culturas tradicionais, em vez de se apostar nas monoculturas que apenas agravam o problema, propomos a consociação, isto é, o cultivo de duas ou mais culturas por forma a beneficiarem-se umas às outras.

Esta técnica potencia um maior aproveitamento dos nutrientes presentes no solo e, como tal, um maior aproveitamento do solo e consequente aumento da produtividade. A consociação também tem demonstrado melhores resultados no combate a pragas na medida em que cria uma barreira física à sua propagação, através do cultivo de plantas que com propriedades germicidas e anti-germinativas prevenindo as infestantes.

Propõe-se também a aposta no reforço de uma agenda de investigação e inovação que alie o conhecimento empírico de quem está no terreno, isto é, o conhecimento de muitos produtores e produtoras que trabalham diariamente a terra, com o conhecimento científico, apoiando a investigação que é desenvolvida, quer na Universidade da Madeira, quer nas associações de produtores e outras entidades que tenham apostado no desenvolvimento e seleção de variedades mais resistentes aos problemas que têm afetado as produções. A este nível, a Quinta Leonor, no Jardim da Serra, é um projeto que não tem tido o devido apoio face ao trabalho que tenta desenvolver, devendo ser financeiramente mais apoiado e replicado pela Região.

Não podemos continuar a enfrentar as mudanças que têm afetado as nossas culturas fingindo que não temos este problema e continuando a fazer o que sempre se fez.

A criação de uma Estratégia Regional para a Fruticultura em Altitude com estes pressupostos vai ao encontro do diagnóstico e medidas traçadas no âmbito da política agrícola comum, nomeadamente no que diz respeito a procurar assegurar uma gestão mais sustentável dos recursos e uma maior conservação da paisagem através de medidas que respondam aos desafios específicos das zonas rurais. Esperemos que a discussão do projeto, previsivelmente no reinício dos trabalhos da Assembleia, seja profíqua.

Entretanto, aproveite o fim-de-semana, dê um pulo ao Jardim da Serra e não se esqueça de provar as bolas de berlim que serviram de mote a este texto. De vez em quando podemos comer sem (muita) culpa.