O legado
O cinquentenário de São Tiago Menor como Padroeiro do Funchal trouxe forte revisitação da memória religiosa e artística deste legado tão impressivo da história e cultura da Madeira. O que, entre outros aspetos positivos, como os relativos à investigação e aprofundamento das fontes da tradição quanto à figura do Santo e às circunstâncias do Voto, acaba por suscitar alguma reflexão à volta das motivações devocionais que envolvem a comunidade crente. A inerente dimensão política da promessa de 1421 e da sua celebração, não esgotam o poder simbólico do ato em cada ano renovado, de tanto maior alcance quanto esta tradição não se esboroou no tempo, mas, na fidelidade dos funchalenses, acabou por alcançar uma maturação de 500 anos...
A tradição só se mantém quando há vontade e inteligência para atualizá-la a cada contexto epocal. A mudança vive da tradição, a tradição vive pela mudança. É precisamente apoiados no veio desta tradição que liga diferentes épocas, lugares e culturas, que podemos esboçar, no agora deste tempo e da nossa circunstância, uma reflexão que não desdenha enfrentar a pergunta incómoda: o que pode significar, numa sociedade dita secular e pós-cristã, falar de milagre e devoção, como se fosse possível simplesmente “transplantar” para o século XXI imagens, promessas e crenças de uma comunidade tão arreigadamente religiosa como era a do século XVI? O que ficou da tradição antiga, o que permanece para lá da mudança?
Para abreviar conceitos: “secularização” é uma chave de leitura para os processos sociais e científicos da modernidade, em que a cultura e a razão prescindem de toda a orientação religiosa, o devir histórico é visto como puramente imanente, e todos os factos da vida do homem e da natureza se pretendem regular e explicar apenas por nexos de causalidade intramundana. No mundo agora des-sacralizado, que dança sem especial finalidade a música do acaso universal, a vida humana torna-se prisioneira da sua própria unidimensionalidade: toda a crença foi extirpada e cada pessoa é só um indivíduo mais na cadeia de (re)produção e na algaraviada sem fim do linguajar dominante, tateando sentidos precários no quotidiano coletivo do eterno retorno do mesmo. “Milagre”: coisa de um tempo mágico, sem lugar na era da ciência e dos algoritmos. Agora, sobre esse fundo negro da desmemória acelerada da tradição e da crença, instala-se com afinco “a era da incerteza” sob o domínio dos novos “idola tribu” do politicamente correto, da angústia do relativismo e da amoralidade, da ditadura das ideologias tecnocráticas que salvaguardam, sobretudo, o direito do mais forte à liberdade.
500 anos depois, como trazer ao presente o “milagre” do Padroeiro da cidade, agora que uma pandemia induz nova pertinência à dialética da razão e da fé? Penso que desse legado da tradição, resta uma exemplaridade possível: a crença não exige qualquer “sacrificium intellectus”, antes implica a aceitação da racionalidade imanente às conclusões científicas e subsequentes procedimentos sanitários. Perceber que, agora como então, é na solidariedade por objetivos humanitários que o horizonte pode abrir-se em esperança e que um sentido plenificante pode ser vivenciado. Que ninguém se salva sozinho, e que qualquer futuro será sempre uma conquista partilhada. A tradição atualiza-se numa racionalidade crente: a Vida, dom e tarefa, será sempre o bem maior!