O bom, o mau e o precipício
Em 2020, o Município (do Funchal) investiu 48% do que tinha planeado investir. Isso quer dizer que metade do investimento planeado ficou na gaveta
O primeiro-ministro foi vacinado. Cumpre o distanciamento social e usa máscara. Um membro do seu gabinete foi infetado com a COVID-19. De imediato, foi ordenado o isolamento de António Costa. Um cidadão vacinado, cumpridor das medidas de proteção foi, sumariamente, enviado para casa. Até Marcelo questionou o zelo profilático. A justificação? Para a DGS, quanto ao isolamento, as pessoas vacinadas são tratadas da mesma forma que as não vacinadas. Até aceito o cuidado que exige a situação epidemiológica, o problema é trocarmos precaução simbólica pela eficácia científica da vacina. Afinal, a vacinação ainda é a nossa maior arma contra o vírus. Convém não esquecer.
O bom: Vice-Almirante Gouveia e Melo
Henrique Gouveia e Melo é um homem improvável numa missão que parecia impossível. De submarinista a vacinador-mor do reino, o vice-almirante lidera a maior operação logística de que há memória em Portugal. Provavelmente, a mais importante também. Os números mostram a eficácia imposta por Gouveia e Melo. Portugal é o 13.º país da União Europeia com maior percentagem da população com a vacinação completa. Um em cada três portugueses já tomou as duas doses da vacina. A semana passada fomos o Estado-Membro que, em média, mais pessoas vacinou. Não creio que o vice-almirante seja um homem providencial, mas criou nos portugueses a sensação que, afinal, em Portugal, é possível fazer algo bem feito. À eficácia no cumprimento da missão, Gouveia e Melo juntou a abnegação e o recato que escasseiam na vida pública. Não o vemos nos obrigatórios programas da manhã, nem lhe conhecemos estados de espírito mediáticos. Se calhar, isso é o que mais desarma no vice-almirante. Veio para completar uma missão e regressará ao anonimato assim que o faça. Sem fogo de artifício ou voltas de vitória, apenas pela vontade de bem fazer. Mas o sucesso do marinheiro não pode dar lugar à tentação de encontrar nos militares a panaceia para todos os males da governação. A História conhece bem o perigo dessa deriva. Coisa distinta é uma profunda e necessária reflexão sobre uma maior intervenção das Forças Armadas em áreas críticas para a vida do país. O vice-almirante é mais do que o camuflado verde. Sobre o uniforme, li por aí que, como disfarça em combate, também distingue numa sociedade carecida de distinção. Por isso, mais do que justo, o camuflado é necessário.
O mau: As contas da Câmara do Funchal
Pelo segundo ano consecutivo, a Câmara do Funchal teve as suas contas chumbadas por todos os partidos da oposição. Todos. Do PCP ao CDS, passando pelo PTP. Não há memória de tão unânime e repetida censura à governação municipal. Mas de todos os números discutidos, há um que salta à vista. A taxa de execução do plano de investimentos. O que a Câmara planeou investir na cidade e aquilo que, efetivamente, conseguiu executar. Em 2020, o Município investiu 48% do que tinha planeado investir. Isso quer dizer que metade do investimento planeado ficou na gaveta. Os números da inércia, para além de expressão contabilística, sentem-se na cidade. Lanço um desafio simples a quem vive ou trabalha no Funchal. Identifique um investimento municipal que, nos últimos 4 anos, tenha sido estruturante para a cidade. Apenas um. Um projeto camarário que tenha redefinido o Funchal. A requalificação do centro de Santo António? Não saiu do papel. O centro cívico de Santa Luzia? Aguarda por melhores dias. A praça central de São Gonçalo? A Felisberta? As perguntas tornam-se retóricas, porque as respostas são óbvias. Só não vê, quem não quer ver. Por isso, mais do que um ensaio sobre a cegueira, o investimento da Câmara na cidade tem sido um doutoramento sobre a inércia.
O precipício: Cabrita e o acidente
Nestas coisas os nomes importam. O seu era Nuno Santos. Foi atropelado, enquanto trabalhava, pelo carro oficial do ministro da Administração Interna. Não sobreviveu. Esta crónica não é sobre o acidente mortal, mas sobre a degradação do meio político que o mesmo revela. O comunicado do Ministério a apontar o dedo ao trabalhador, de seguida desmentido pela empresa que gere a autoestrada. A velocidade do automóvel que virou segredo de Estado. A ordem superior, depois desmentida, para impedir novas perícias ao carro. E, acima de tudo, o silêncio de Eduardo Cabrita. O silêncio de quem não percebeu que um acidente com um ministro não é um acidente qualquer. Não afasta as regras da investigação e as garantias de defesa, mas junta-lhe um especial dever de transparência dos responsáveis públicos envolvidos. E isso é tudo o que não tem acontecido. Foi essa incapacidade política de Cabrita, que arrastou o acidente para a agenda da oposição. É óbvio que para isso contribuiu, também, o desnorte à direita do PS. Rui Rio dedicou-se à investigação sobre o registo do automóvel acidentado. O CDS pediu, pela enésima vez, a demissão de um ministro. E nos dias em que Portugal mergulha num pré-confinamento duvidoso, em que a época de incêndios se adivinha ou em que a livre circulação de pessoas na União Europeia está ameaçada, a política portuguesa perde-se num acidente de viação. Não é a demissão de Cabrita que está em causa, essa tornou-se inevitável muito antes do acidente, apenas a incapacidade do PSD e do CDS de saírem da oposição corriqueira e da pequena política. É deste precipício político que as democracias caem e dificilmente se reerguem.