Crónicas

Impressões sobre mercados: de imagem em imagem

FOTOGRAMAS

Primeira breve nota: ao percorrer há uns dias a minha conta pessoal numa rede social, enquanto esperava numa fila num supermercado, detive-me num “post” que referia que o Mercado dos Lavradores era o edifício mais visitado da cidade do Funchal. Creio que a fotografia que ilustrava o comentário focava frutas exuberantes de uma banca, e lembro-me de ter pensado no impato que tal abundância e sugestão de tropicalidade me causaram da primeira vez que visitei o Mercado dos Lavradores, há cerca de uns sete anos. Na altura, apesar dos muitos avisos dos locais que os preços da fruta no local eram exorbitantes e uma armadilha para turistas, fiquei hipnotizada pelas cores e requinte das instalações nas bancas, louvando o artifício dos comerciantes nas suas composições. Segunda breve nota: quando há uns meses (há quase um ano…) vim viver para o Funchal, notei que, ao invés da maioria das cidades em Portugal, ainda havia pelas ruas algumas bancas de venda de fruta a bom preço, e que esta era em geral de muito melhor qualidade que a fruta para compra que encontrava nas grandes superfícies comerciais. Entretanto, se comecei sobretudo a comprar fruta nessas bancas, ainda visito ocasionalmente (e pelas mesmas razões) o Mercado dos Lavradores para comprar peixe. As imagens atraem frequentemente outras imagens (creio não ser a primeira vez que o afirmo aqui). Quer as imagens materiais (considerando aqui como ‘materiais’ também as diversas imagens mediadas pelos ecrãs e dispositivos multimédia que atualmente manuseamos), quer as imagens mentais (como aquelas das minhas memórias dos aglomerados de frutas no Mercado dos Lavradores de há uns anos, ou as das suas bancas de peixe de há apenas algumas semanas). Umas e outras fizeram-me viajar por um conjunto de três imagens do Mercado dos Lavradores, que datam da sua inauguração, em 1940; e por uma outra, cuja data é incerta mas estimada como sendo anterior a esse ano – uma imagem do Mercado do Peixe ou Praça de São Pedro que ficaria junto à atual Avenida do Mar.

Acerca do Mercado dos Lavradores, fica um breve apontamento da autoria de Sérgio Gouveia Franco, numa tese que data de 2012 e aborda a obra do seu arquiteto, Edmundo Tavares: “trata-se de um edifício de arquitetura comercial, moderna, de forte influência Art Deco semi-depurada, de planta trapezoidal, implantada sobre quarteirão, com praça retangular no espaço interior fragmentado e diversificado imaginado como uma cidade em miniatura, com ruas largas e praças espaçadas ritmicamente.” O edifício foi inaugurado em 1940, ano esse de intensa expressão arquitetónica e cultural do modernismo nacionalista do Estado Novo, de forma a dar resposta à exiguidade das instalações do Mercado D. Pedro V – mercado de verduras –, e da Praça de S. Pedro, mercado de peixe, possibilitando ainda o alargamento da Avenida do Mar. Sobre este mercado de peixe anterior ao dos Lavradores, lê-se numa entrada do Elucidário Madeirense de 1921 que as obras que o edificaram “foram mandadas pôr em praça a 8 de Fevereiro de 1839, sendo arrematadas a 22 do mesmo mês e ano. Umas alterações que sofreram as mesmas obras foram arrematadas a 17 de Agosto de 1839, tendo lugar a abertura solene da praça a 29 de Junho de 1840”. Salvaguardando-se que anteriormente à “construção da Praça de São Pedro, era o peixe vendido num pequeno mercado mandado construir pela Câmara em 1817”, sendo de supor “que o local que antes de 1817 servia para a venda de peixe e que, segundo se lê na acta da sessão de 13 de Março desse ano, era «muito indecente e imundo», ficasse nas imediações do actual mercado de S. Pedro.”

As fotografias da autoria do estúdio Perestrellos do Mercado dos Lavradores terão sido feitas nesse seu ano inaugural de 1940, reforçando através dos seus planos gerais e não individualizantes, os princípios ordeiros, modernistas e higienizantes que lhe deram expressão. Espelha-se uma dinâmica progressista, um funcionamento rigoroso, regulamentado e regulamentador dos corpos (abstratos) que por ali se movem, sem enfoque particular nos produtos alimentares para cujo comércio o edifício se destinou. Já na fotografia da Praça de S. Pedro, destaca-se no plano aproximado o peixe disposto na banca e o labor “personalizado” daqueles que o vendiam, porventura os mesmos que o pescaram, através do olhar algo surpreendido, algo tímido do vendedor, que não só sugere a dureza do labor implícito ao ofício, como se encontra distante daquela outra representação modernizante e asséptica. E finalizando, uma terceira breve nota: se comecei por falar de mercados, termino com o olhar detido na pugnância do olhar de um outro (sujeito) cuja existência seguramente hoje se restringe ao plano da imagem, mas para a qual a fotografia em última instância nos remete – como magistralmente assinalou Roland Barthes em A Câmara Clara –, plena de mistério e assombramento. E é em grande medida aí, nessa revelação silenciosa, que reside o seu poder de atração.

Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.