Crónicas

Um Trapiche

Na pandemia, os internamentos e as mortes vão finalmente se divorciando do número total de casos. Os números crescem, mas os casos graves nem por isso

“Trapiche” é um recurso particularmente feliz do dicionário madeirense. Trapiche é como o Tarrafal: antes de ser nome de manicómio, já tinha nome de manicómio. Tanto que em criança julgava que se escrevia “TErapiche”, num pacto deliberado entre a terapia e o fetiche. Foi por manha, e não por acaso, que os Horários do Funchal baptizaram a carreira número 11 de “Trapiche”, para que os avôs (as avós não fazem disto) pudessem apontar para o autocarro e garantir aos netos, boquiabertos, que “aquele ali vai cheio de loucos”. E a vida reserva poucas satisfações como a de se deparar com uma situação descontrolada, caótica, ou rocambolesca, e serenamente sentenciar: “vai ali um Trapiche”.

Pois bem, vai aqui um Trapiche.

Como todos os Trapiches, começa com uma esperança mal depositada. Na pandemia, os internamentos e as mortes vão finalmente se divorciando do número total de casos. Os números crescem, mas os casos graves nem por isso, ou não na mesma proporção. Mérito da vacinação, que prossegue a todo o vapor. Perante este avanço, como reage o Trapiche?

Primeiro, desconfia. Perdido nas redes sociais, o Trapiche menospreza a doença, e a vacina que lhe permite menosprezar a doença. Discute o Covid do amigo do primo em segundo grau, contraído depois de duas doses, mas não as centenas de conhecidos que, vacinados, se safam de uma temporada no Nélio Mendonça, e se lançam com alívio a uma vida mais normal. O Trapiche acompanha impiedosamente as reacções – as alergias, os desmaios, as suspeitas de lotes defeituosos –, mas ignora os factos adversos a esta visão catastrófica. Nos Estados Unidos, por exemplo, concluiu-se que mais de 99% das pessoas que morreram de Covid-19 não estavam vacinadas, e que 99,7% das infeções se verificam em não vacinados. Por cá, só 0,1% dos integralmente vacinados se infectaram com Covid: ou seja, o amigo do primo é um em mil. As reacções à vacina são raras e comedidas, mais do que na vacina do tétano ou da febre amarela.

Porquê, então, a pulga atrás da orelha? Simples. A desconfiança, no Trapiche, passa por inteligência. Assim como confundem as cuecas com o chapéu, os loucos confundem a crítica com o sentido crítico. Afinal, toda a loucura é uma forma de triunfo do “Eu” sobre o Mundo. Quando o episódio substitui os dados, quando “ouvir dizer” serve de prova, e quando a ficção se converte em informação, a história contada pelo “Eu” prevalece sobre a metódica experiência da Humanidade. E o indivíduo pode adorar-se como a Nossa Senhora de Fátima.

O mais grave neste Trapiche é que estes comportamentos, antes reservados a umas ovelhas tresmalhadas, são afinal estimulados pelo desempenho errático do Governo.

Todas as quintas-feiras, gira no Conselho de Ministros uma roda da sorte de medidas a aplicar menos de dois dias depois, com pesadas multas para incumpridores. A ninguém ocorre antecipar este exercício, e poupar a plebe à arritmia e à confusão.

Os auto-testes, antes realizados em farmácia pela ameaça de leviandade, são vendidos no supermercado. Os portugueses, entretanto, iluminaram-se, e são incapazes de os aldrabar para ir de férias, ou se pouparem a um isolamento penalizante.

À sobrecarga informativa, seguem-se mistérios de chumbo. Nem a DGS, nem o Governo explicam o livre trânsito de vacinados, quando afinal podem contrair e transmitir o vírus, e tantos se sujeitam ainda a quarentenas e profilaxias. Só os bárbaros, como os ingleses, reconhecem um risco e vivem com ele.

A cobardia, o medo, a germofobia e a hipocondria multiplicam-se sem travão, pois servem a obediência, e a obediência simplifica. O álcool-gel e lavar as mãos não são já uma disciplina, mas um ritual de anestesia para a ansiedade.

Lentamente, a vacina começa a extrapolar do seu crítico papel de defesa da saúde pública, e converte-se em carimbo de obediência e salvo conduto. Numa rara parceria entre o cinismo e a honestidade, Duarte Cordeiro (coordenador da Covid-19 para a área metropolitana de Lisboa) foi o primeiro a reconhecer: abrir as discotecas “podia ser um bom incentivo à vacinação”. Eis as medidas explicadas: se vacinar não pode ser obrigatório, não vacinar pode ser muito inconveniente.

Numa semana, o pior já passou. Na seguinte, o pior vem aí. Quarta-feira, a doença é benigna para pessoas saudáveis com menos de 50 anos. Quinta-feira, é para vacinar menores de 18. Na Sexta, testamos de PCR para entrar num casamento a um quarto da lotação. No Sábado, enchem-se estádios como ovos na televisão. À noite, juntar resmas de vacinados aos beijos numa cave a ouvir techno pode ser “um bom incentivo”. De manhã, têm de se isolar da família se testarem positivo.

Há quem defenda estas chantagens, com o argumento de que “só assim” se vacina. Como em tantas outras relações, creio que as pessoas se portam como animais quando são tratadas como animais. Se estas incongruências são inevitáveis, precisam de uma explicação, ou pelo menos de um horizonte: um qualquer limiar de imunidade em que a Covid se dissolve no risco normal da vida, e a obsessão pelos infectados se transforma em preocupação com os doentes.

Por ora seguimos, mas sem norte, sem rumo, sem objectivo. É natural que tudo nos irrite a todos. E é natural que de fora se olhe para dentro do Trapiche, e de dentro do Trapiche se olhe para fora; mas seja já impossível saber quem está dentro, e quem está fora, dessa nossa metafórica casa de saúde.