O bom, o mau e os domesticados
À boa maneira soviética, a nova liderança do Bloco de Esquerda tratou, antes de mais, de aniquilar a anterior
Estamos no longínquo ano de 2074 e o sistema judicial português atingiu o zénite. Toda a instrução criminal é liderada por um único juiz, que é também responsável pelos julgamentos. A presunção de inocência foi substituída pela culpabilidade intrínseca. A acusação é, literalmente, uma folha em branco preenchida durante o julgamento. Os tribunais funcionam em estúdios de televisão e são relatados em direto. Advogados e procuradores participam numa “flash interview” obrigatória, no final de cada sessão. As condenações são publicadas em dois jornais de grande tiragem e anunciadas em três programas da manhã. As absolvições passaram a ser segredo de justiça. Não queremos cá facilitismos.
O bom: Coroa do Ilhéu
Onde antes havia um bairro, fez-se um jardim. E no topo desse ilhéu de má memória, pousou-se uma coroa. O ornato, que é barco e escultura, ocupa o trono da identidade de um povo cuja história ajudou a escrever e a quem o nome emprestou. A “Coroa do Ilhéu” é o primeiro xavelha, neste século, a ser construído de raiz. O barco, com mais de dez metros de comprimento, ganhou vida a partir das mãos de Rigo 23 e do mestre Bailinha, mas, na sua construção, participaram mais de 100 pessoas, entre elas Catarina Gonçalves - a primeira mulher a participar na construção de um xavelha. A “Coroa” é memória e passado, mas também é comunidade e futuro. Naquele barco navega um povo que não renega o seu passado e que o ostenta com orgulho. Por isso é que o xavelha, apesar de ancorado no ilhéu, está apontado ao horizonte, para nos lembrar do que foi e do que pode ser Câmara de Lobos. Uma cidade moderna, cosmopolita e com futuro. O barco de Rigo e Bailinha poderá não ir ao mar, mas recorda-nos do “imenso e possível oceano”.
O mau: Sara Cerdas
Não tenho Sara Cerdas em má conta. À exceção de um voluntarismo mediático excessivo, repetido, aliás, noutras latitudes parlamentares, a eurodeputada tem feito um trabalho interessante na área da saúde no Parlamento Europeu. Talvez por isso, lhe assente tão mal o voto contra uma resolução europeia que reconhecia o direito do povo cubano à realização de eleições democráticas. Pior ainda, foi a justificação que se seguiu. Sara Cerdas defendeu-se, pois teria votado a favor do 1.º parágrafo da resolução. A seletividade da votação não abona a seu favor. Não compreendo, e Sara Cerdas não explica, o voto contra os restantes parágrafos. Reproduzo, aqui, apenas dois: a garantia aos cubanos do direito de sair e regressar ao seu país, e a possibilidade de realização de eleições livres em Cuba. Não há razão que justifique um voto contra. Nem sequer a do voto por arrasto, que teria levado Cerdas a seguir a orientação do seu grupo parlamentar. Basta recordar o seu sentido de voto quanto ao levantamento das patentes das vacinas contra a COVID-19, onde foi a única eurodeputada a votar de forma distinta do seu grupo. E isso leva-nos à questão essencial. Não creio que Sara Cerdas seja uma fervorosa apoiante do regime cubano, como são alguns dos deputados portugueses que votaram ao seu lado. Mas suspeito que seja tolerante com o conto de fadas da revolução cubana ou que encontre no embargo americano razão para o seu voto. É óbvio que o embargo tem de cair, mas o mesmo não é responsável pelos presos políticos, pelos cubanos desaparecidos ou pela ausência de liberdade de expressão em Cuba. Por isso, votar contra esta resolução é branquear a violação dos mais básicos direitos humanos em prol de uma fantasia económica que terminou sempre da mesma forma. É fácil consentir o regime cubano no conforto de Bruxelas, mais difícil é defender a democracia em Cuba. A muitos cubanos custou-lhes a vida.
Os domesticados: O novo Bloco de Esquerda
À boa maneira soviética, a nova liderança do Bloco de Esquerda tratou, antes de mais, de aniquilar a anterior. Mantendo a tradição, o julgamento de Paulino Ascensão foi rápido e indolor. Condenado por inércia, com pena agravada pela demissão. Ajustadas as contas com o passado, deu-se início ao processo de domesticação do Bloco. Primeiro, há que reduzir expectativas. A inexperiência da anterior coordenação, maleita da qual a atual liderança também padece, não permite apresentar listas em todos os concelhos. Aliás, só um milagre permitiria convencer alguém a concorrer pelo Bloco fora do Funchal. Reduzida ao mínimo a expectativa eleitoral, é hora de encontrar uma ténue luz ao fundo do túnel. A última esperança de vida do Bloco na Madeira - o Partido Socialista. Então, troca-se a sobrevivência política pela domesticação partidária. Para os socialistas, o Bloco quer-se obediente, bem comportado e silencioso. Dos bloquistas, no Funchal, só se querem os votos e o símbolo para justificar a coligação. É por isso que, nos últimos 4 anos, não se conhece uma medida municipal a que o Bloco possa chamar sua. É por isso que a vereação municipal é terreno vedado aos bloquistas. Nem o passe de magia que fez desaparecer toda a equipa da vereação, supostamente responsável pelo sucesso da governação socialista, e a substituiu por outra equipa completamente diferente, permitiu influência ao Bloco. Ao milagre da transformação dos vereadores socialistas contrapõe-se a maravilha do desaparecimento da vereadora bloquista. Na verdade, o preço da mancomunação eleitoral é o da dissolução partidária. O Bloco dissolveu-se e foi absorvido pelo PS.