Isabela de França, britânica casada com um madeirense, escreveu um notável diário, onde registou com grande minúcia a sua viagem e estadia de onze meses na Madeira em meados do século XIX. Publicado em 1970 com o título de Jornal de uma visita à Madeira e a Portugal 1853-1854, tornou-se um dos melhores, senão o melhor testemunho sobre a Madeira, suas gentes, paisagens, costumes e monumentos que num registo excelentemente escrito e por ela própria brilhantemente ilustrado, nos abre uma janela para a vida insular de meados do século XIX.
A 15 de agosto de 1853, o navio inglês Eclipse aportava no Funchal, dele desembarcando o casal constituído por José Henrique de França, morgado com várias propriedades na Madeira, e sua mulher, Isabela de França, que se deslocavam à ilha por duas razões: uma, a de realizar a sua viagem de núpcias, outra, de caráter bem mais pragmático, destinada a resolver problemas ligados às terras que aqui possuíam.
Se para Isabela esta viagem correspondia a uma estreia, para José Henrique era apenas mais uma das várias deslocações até então realizadas à terra do seu pai, onde passara uma parte da juventude e cumprira o serviço militar nas milícias, antes de voltar para Inglaterra e juntar-se ao pai na gestão dos negócios.
João Sebastião de França, o pai, tinha saído da Madeira antes de 1792, pois nesta data já se declarava “merchant” com residência em Liverpool. Casado com uma senhora inglesa, teve dois filhos, um dos quais faleceu novo, e o outro, José Henrique, se manteve a acompanhar a mãe até à morte desta em 1851, só se casando depois disso. A mulher, por seu lado, era filha de um arquiteto, Aaron Hurst e fora educada com primor, tornando-se não só muito culta, como boa cavaleira, habituada conviver com a melhor sociedade, muito elegante e de fino espírito de humor.
Apesar de recém-casados, a verdade é que tanto José Henrique como Isabela já passavam dos 50 anos – ele tinha 51 e ela 58, mas o enlace tardio em nada perturbou o bem entendimento do casal, que sempre mostrou um alto grau de cumplicidade, companheirismo e atenção de qualquer um dos seus membros em relação ao outro.
Isabela de França, à semelhança do que era uso nesses tempos, escrevia um diário que usou para registar com grande minúcia os pormenores da viagem em questão, que os levou a uma estadia de onze meses na Madeira incluindo, no regresso, uma visita a Lisboa e Sintra. O grau de precisão que mostrou nesse relato sugere que o marido o tenha lido e eventualmente corrigido, sobretudo talvez no que toca à grafia dos termos em português, sempre irrepreensível, mostrando, uma vez mais, os cuidados de que rodeava a esposa.
Durante muito tempo desconhecido, o manuscrito do Diário de Isabela de França acabou por ser encontrado pelo Dr. Frederico de Freitas num alfarrabista em Londres, tendo-o então comprado e trazido para a Madeira para juntar à sua já extensa coleção dos mais variados itens. Esse manuscrito viria, mais tarde, a ser vertido em português pelo Dr. Cabral do Nascimento, ficando a publicação à espera até 1970, ano em que finalmente saiu à luz, com o título de Jornal de uma visita à Madeira e a Portugal 1853-1854, e se tornou um dos melhores (ou mesmo o melhor) testemunhos sobre a Madeira, suas gentes, paisagens, costumes e monumentos que num registo excelentemente escrito nos abre uma janela para a vida insular a meados do século XIX.
Com um olho treinado e boa mão para o desenho - ou não fosse filha de um arquiteto - , Isabela não se limitou à escrita, a ele também se devendo o conjunto de ilustrações que acompanham o texto fixando momentos que achou dignos de registo complementar.
O Jornal abre com o desembarque no Funchal, que a autora revela assustador por ter de ser içada para uma cadeira de pau, a qual por sua vez, se teria de descer para um bote. Feito este trajeto de olhos fechado com receio do que poderia acontecer, Isabela encontrou-se a salvo e já capaz de usar toda a argúcia nas sucessivas descrições que vai fazendo do que encontra. Assim, viu a “praia, que é íngreme, formada de calhaus negros e rolados, nenhum mais pequeno que um ovo e alguns grandes como cabeças humanas” e pouco depois as ruínas de um cais erguido sem cuidado e que o mar em breve desmantelou. Segundo ela, a incúria ficaria a dever-se ao costume de, em Portugal, as obras, embora alegando o interesse público, terem como “verdadeiro objetivo a glorificação pessoal, se não nos emolumentos que os funcionários auferem”. Alojada num hotel na rua da Carreira, depressa sai para um passeio e para se espantar com o nome das ruas – dos Aranhas, de João Gago, das Dificuldades, das Pretas…
Alargando o passeio, visita a zona velha da cidade, observando que “Para lá das ribeiras, a nascente, ficava outrora uma zona respeitável da cidade (…) mas nos últimos anos vem sendo abandonada às classes mais baixas e transformada numa verdadeira espelunca. Este bairro cognominaram-no de ‘Brasil’ no tempo da Independência deste país, por causa da antipatia dos seus moradores para com os soldados de Lisboa”.
Alguns hábitos madeirenses causavam-lhe muita estranheza, designadamente, por exemplo, o tumulto que precedia a entrada para a missa e que lhe merece um comentário: “Foi preciso decorrerem muitos domingos para me convencesse que não concorria a uma feira”. A antroponímia não lhe fica atrás: “As famílias locais têm-se casado tanto entre si que quase todas são mais ou menos aparentadas; e como não se regulam rigorosamente pelo nome materno ou paterno, e os irmãos usam apelidos diferentes, precisa-se de longa permanência aqui para destrinçar esta embrulhada”.
Aos seus olhos educados de inglesa de classe alta, a arte madeirense parecia, de modo geral, má. Depois de opinar que nas casas os quadros são raros, afirma que os “que existem são tão maus que mais valia retirá-los”, enquanto considera a igreja do Colégio cheia de “horríveis pinturas toscas”. Por outro lado, porém, a natureza da Ilha deslumbra-a. Em visita ao Rabaçal, depara-se com a levada do Risco e descreve-a assim: “Eu olhei para cima e senti-me como nunca mais me poderei voltar a sentir. Uma rocha alta, alta e côncava semicircular e um verde mais verde que qualquer um dos demais (…) A rocha é tão alta que na borda da mesma, ao olharmos para cima, esta senta-se contra o céu azul claro como se nele descansasse; enquanto a quietude perfeita de tudo ao redor (…) se combina para produzir uma sensação de intensa admiração - Eu deveria antes chamar-lhe Uau!”.
Quanto às pessoas vê-as de diferentes formas. Enquanto se espanta com a subserviência do feitor do marido que avançou para ela, “curvando-se até o chão” e lhe “abraçou os joelhos” ficando nessa atitude “à espera que lhe afagasse a cabeça”, considera os criados “invariavelmente corteses e bem-humorados. Têm o costume simpático de dizer “bom dia” e perguntar se se passou bem a noite”.
A alimentação também a surpreende, sobretudo os peixes, sobre os quais tece alguns comentários que hoje podem admirar. Do gaiado, por exemplo, que acha “asqueroso” e do atum, afirma que “estas duas espécies são raramente comidas por pessoas que não sejam pobres”. Já a espada é descrita como “um congro achatado ou uma serpente de lata feita para um catavento. Dizem que é bom de comer”. Outras vezes, contudo, a surpresa é pela afirmativa: “A canja portuguesa não é aquela coisa aguada a que em Inglaterra dão esse nome; é uma espécie de sustância (sic) de galinha, de gosto muito agradável”.
E assim se poderia continuar por muito tempo, assinalando os comentários de estranheza, regozijo, deslumbramento, crítica, apreço, enfim, de todas as emoções que a Madeira despertou nesta inglesa e que, curiosamente, também servem para dar informações sobre a Madeira que não se encontram em qualquer outro lado.
Na impossibilidade de aqui dar uma visão completa de tudo quanto este documento encerra, fica uma recomendação: leiam-no.