'Maleconazo' foi há 27 anos e foi a semente do descontentamento que floresce em Cuba
Entre os milhares de cubanos que saíram às ruas no domingo, muitos não eram nascidos em 1994, quando Fidel Castro foi confrontado em Havana com o "Maleconazo", a primeira rebelião social desde a Revolução de 1959.
Na altura, essas manifestações surgiram em pleno "período especial", marcado por uma profunda crise económica ligada ao desmantelamento da União Soviética e o bloco comunista, principal apoiante financeiro e político da ilha socialista.
Em 1993, o país vivia a pior crise económica, cujas consequências foram sentidas principalmente durante o verão de 1994.
Cortes prolongados de energia, paralisação dos transportes, escassez de alimentos e medicamentos foram, tal como agora, o catalisador para a mobilização dos descontentes.
Em 05 de agosto de 1994, vários moradores tentaram, sem sucesso, apreender uma embarcação no porto de Havana, um incidente no qual um polícia morreu.
As forças de segurança evacuaram o local e os manifestantes dirigiram-se para a longa avenida costeira Malecón, na capital do país.
Ao mesmo tempo, a Rádio Marti, financiada pelo governo norte-americano, convocou os habitantes a reunirem-se ali naquele dia para a suposta chegada a Havana de uma flotilha de iates turísticos de emigrantes.
A ausência dessa flotilha provocou um aumento de tensão e os protestos eclodiram.
A agitação já se tinha espalhado para a parte central do Malecón, onde as lojas foram saqueadas e as montras de vidro foram estilhaçadas.
A polícia reprimiu essas manifestações que se limitaram à capital, e cerca de 370 pessoas foram detidas, 30 ficaram feridas, incluindo 11 polícias.
A ordem foi restabelecida com a chegada de Fidel Castro durante a tarde.
Uma semana depois, o histórico dirigente cubano ordenou à guarda costeira que não impedisse as saídas clandestinas de cubanos para a costa da Florida em embarcações improvisadas, incluindo jangadas.
No espaço de um mês, 34.000 cubanos fugiram do país.
Em 1994, como em 2021, Havana acusou os EUA de estarem por trás da mobilização e denunciou a política de Washington contra a ilha, particularmente o asfixiante embargo económico em vigor desde 1962.
Agora, 27 anos depois do "Maleconazo", os cubanos voltaram às ruas, mas desta vez em dezenas de cidades e vilas da ilha.
No domingo, os moradores acorreram às calçadas espontaneamente gritando "Temos fome", "Liberdade" e "Abaixo a ditadura", subvertendo ainda o emblemático 'slogan' da revolução cubana - "Patria o Muerte!" (Pátria ou Morte!), substituindo-o por "Patria y Vida" (Pátria e Vida), à boleia de uma música de um grupo de músicos dissidentes.
Porém, desta vez, o Presidente cubano, Miguel Díaz-Canel, apelou aos seus apoiantes para também eles saírem à rua para defender a Revolução.
A atual crise económica, a pior desde 1993, ampliada pelas consequências da pandemia de covid-19, que travou o turismo, pode levar à queda do regime cubano, conforme explicaram dois analistas à Lusa, na segunda-feira.
"O impacto da pandemia de covid-19 é um fator importante, contribui para a crise de Cuba. Mas a realidade é que a economia de Cuba já era precária", disse à Lusa Moisés Naim, analista do Carnegie Endowment for International Peace e colunista em vários meios de comunicação nos EUA.
Por seu lado, Rafaela Palacio, investigadora mexicana especialista em América Latina, professora na Universidade de Salamanca, em Espanha, "mais tarde ou mais cedo - e mais cedo que mais tarde - a insustentável situação económica de Cuba levará a uma revolta da população, que não aguenta perceber que não há uma saída para esta crise.
Para Naim, o impacto das sanções económicas dos EUA é "insignificante", servindo apenas de "desculpa conveniente, usada pelo regime e pelos seus apologistas no exterior".
Também por isso, Rafaela Palacio insiste na tese de que o regime de Havana terá de encontrar uma rápida solução para a crise, deixando de insistir na tese de que Washington é responsável pela grave situação em que vivem os cubanos.
"Os cubanos já desacreditaram dessa ideia. Até porque se lembram de que, com a suavização das medidas sancionatórias dos EUA, no tempo do ex-Presidente Barack Obama, pouco ou nada mudou. E o que mudou revelou que a culpa estava em Havana e não em Washington", acrescentou a investigadora.
Cuba registou 5.613 contágios pelo novo coronavírus nas últimas 24 horas e 29 óbitos, anunciou hoje o Ministério de Saúde Pública cubano, somando assim um total de 250.527 casos de infeção e 1.608 mortes desde o início da pandemia.
Na segunda-feira, o país registou um novo recorde diário de contágios e mortos devido à covid-19, com 6.923 contágios e 47 mortos.