Crónicas

Um “avô” francês

Se falarmos de grandes filósofos cujo legado é incontornável para a compreensão da contemporaneidade, temos de falar de Edgar Morin: não só o seu pensamento, mas ele próprio passa de um século a outro, e torna-se o “avô centenário” que completa na próxima quinta-feira os 100 anos do seu nascimento.Antropólogo, sociólogo e filósofo, Edgar Morin nasceu em Paris a 8 de julho de 1921 (judeu de origem sefardita, Edgar Nahoum de seu nome). Autor de dezenas de livros, as questões da filosofia da ciência e da teoria da complexidade são nucleares à sua reflexão, mas o seu pensamento aberto avançaria depois para temas caros à educação, à ecologia e ao futuro da vida humana na Terra face aos impasses do presente. Não é possível, obviamente, fazer aqui qualquer “resumo” da obra de um autor tão rico e complexo. Resta-nos, pois, uma brevíssima evocação de Edgar Morin, que se caraterizou como um “autodidata incorrigível” e um “omnívoro cultural”, para de alguma forma “explicar” o seu próprio percurso de investigador que religa continuamente diversas áreas do saber e produz novas sínteses no estilhaçar de falsas fronteiras “científicas”. É assim que se afirma claramente como um pensador da transdisciplinaridade, cruzando as ciências da natureza e as sociais e da cultura, sempre em busca de uma compreensão mais funda (e verdadeira) acerca do “animal humano”. Pensador inquieto que não descansa no adquirido, Morin lançou agora em França as “Leçons d’un siècle de vie”, onde recorda as etapas importantes da sua vida, mas destacando os erros cometidos, a dificuldade de compreender o presente, e a necessidade da autocrítica para a vida em sociedade. Longe de qualquer auto-glorificação, o livro acaba por expor um conjunto de “obsessões”, a que ele chama “lições” sobre si mesmo. Como sublinha o “Libération”: “O avô de todos os franceses tem um sonho secreto: quando não estiver mais vivo, Morin espera que as pessoas consigam se amar umas às outras e a si mesmas, em vez de continuar nessa regressão ocidental marcada por neototalitarismos em gestação”. Contra a padronização uniformizadora das ciências e da cultura, Morin acentua sempre a visão crítica, aberta, relacional e integradora dos saberes, única forma de preservar o humanismo na era das incertezas. Já em plena experiência da pandemia, em entrevista à “France Culture”, dizia: “A humanidade vive uma época de perigos incríveis e, ao mesmo tempo, de possibilidades de ultrapassar as coisas. É por isso que não podemos ser cegos, não devemos ser otimistas de maneira estúpida, mas é preciso estar presente porque esta é a nossa vida”.Pessoalmente, nunca esquecerei aquele élan de descoberta (inicial e iniciadora) que foi o primeiro contato com Edgar Morin — finais dos setenta, princípios de oitenta: já lá vão uns aninhos... — em três livros “fundadores” de uma nova visão antropológica, sempre na procura de saber mais acerca de si e do mundo: “O Homem e a Morte”, “O Cinema ou Homem imaginário” e “O Paradigma Perdido – a Natureza Humana”. Revisitá-los agora é perceber, no meio de tanto “ensaísmo” de fancaria que se edita por aí, a alegria e a força de um pensamento onde há muitas pistas para reavaliar o presente e (re)desenhar ainda um futuro de rosto humano. Fica a lição essencial: imaginar alternativas, criar, religar, falhar — e ousar recomeçar. Sobram múltiplos saberes, mas falta-nos a sabedoria.