Separados pela morte, juntos na imagem
FOTOGRAMAS
A segunda imagem a figurar na crónica iniciada a semana passada é um retrato dos Perestrellos Photographos, feito em estúdio, de uma mulher sentada num banco de madeira a segurar um pequeno ramo de flores na mão direita; a pose em ¾ e capturada pela objetiva da câmera em ligeiro contrapicado, tem por trás um fundo pintado com jarras de flores e outras ornamentações que sugerem um cenário romântico e burguês. A expressão do rosto é absorta, provavelmente saudosa. Este sentimento adquire expressão ao vermos no canto superior esquerdo um retrato sobreposto de um homem, também ele com ar absorto, mas mais sugestivo de um sentimento de resignação que de melancolia ou saudade. O tamanho do retrato montado sobre o primeiro é bem menor do que aquele, com as figuras humanas a assumir diferentes escalas e ocupações na superfície do papel, o que sugere uma simultânea ausência e presença do homem retratado na imagem então em jogo. Ausente na realidade, presente na recordação daquela, que ao que tudo indica era sua viúva, não fosse a presença das flores, imemoriais sinais de lembrança dos mortos pelos vivos.
Uma imagem (fotográfica) nunca tem um sentido unívoco, presta-se sempre a múltiplas leituras. Poderíamos olhar para esta do ponto de vista da indumentária, dos acessórios exibidos e apetrechos utilizados, vendo nessa mulher e naquele homem “manequins arqueológicos” que ao mesmo tempo que ilustram o traje de uma época se circunscrevem a ela. Por estes elementos a fotografia torna-se uma “representação do tempo”, nas palavras do pensador alemão Siegfried Kracauer, publicadas em 1963 num belo ensaio sobre a imagem técnica. Podemos, nesse sentido, e associando essa marca visual à especificidade da prova fotográfica – uma técnica de impressão em papel de gelatina que ao fixar os sais de prata contribuiu para a divulgação da fotografia em maior escala desde finais do século XIX –, concluir com relativa certeza que se trata de uma imagem produzida na década de 1920.
Mas interpela-nos menos o espanto associado a essa datação do que a dimensão memorial e afetiva da fotografia. Memorial enquanto tributo aos mortos, recordação enquanto evocação simbólica de uma união que persiste em vida, na memória, na imaginação, no coração dos que vivem. A memória através da fotografia, a fotografia enquanto ato de memória, não estivesse a etimologia da palavra recordação – trazer de volta ao coração – associada a uma dimensão mais propriamente emocional da memória, faculdade que para os antigos gregos chegou a estar alojada no coração. Este tipo de fotografias de mulheres viúvas cujo retrato surge no mesmo plano do do marido ausente não é no entanto singular. Alguns exemplos de imagens semelhantes surgem num livro de 2004 do historiador da fotografia Geoffrey Batchen, com o sugestivo título Forget Me Not – Photography & Remembrance.
Aí, surgem imagens de mulheres que seguram retratos dos maridos falecidos. O que nos leva a pensar que um dos aspectos mais curiosos desta imagem é o recurso à técnica da fotomontagem, não à exibição de uma fotografia no momento do ato fotográfico, mas à sobreposição a posteriori de um imagem anterior à nova tiragem. Mas sobre isso falaremos na próxima semana a partir de um outro retrato. Porque um dos sentidos das fotografias é a sua capacidade de nos fazer lembrar de outras imagens.
Ana Gandum com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.