Municípios de e com futuro
1. Disco: mão amiga alertou-me para “Daddy’s Home”, o novo álbum de St. Vincent. Annie Erin Clark já anda por aí, discograficamente, desde 2007. Este novo trabalho, sem fugir ao que dela se pode esperar, é de um enorme requinte instrumental. A esse nível, é o seu melhor. Um daqueles discos a que se cola muito bem a expressão inglesa: “you did it again” pois não decepciona. Destaque para “Morning Train” de Sheena Easton que aqui surge com o nome de “My Baby, Wants a Baby”. Boa música para ouvir com enlevo.
2. Livro: Alice Munro ganhou o Nobel em 2013, mas em 2009 já ganhara o Man Booker Prize com “A Vista de Castle Rock”. Um livro que é uma viagem da autora às suas raízes escocesas. Uma mistura de realidade e ficção que constrói uma genealogia que é o resultado da vontade da escritora. Genealogia que, não ficaria completa, sem um final autobiográfico.
3. Não gosto de atirar-me para as coisas sem me preparar como deve ser. Nos últimos meses, tenho lido e estudado muito sobre modelos de gestão autárquica; sobre urbanismo; mobilidade; desenvolvimento local; governança, administração e participação; digitalização; empreendedorismo, ambiente, etc. Quanto mais procuro saber, com menos certezas fico. Gosto que assim seja pois é a partir da dúvida que se pode concluir.
As cidades são organismos vivos onde as multivalências que as constituem estão todas interligadas. Um problema aqui, vai criar problemas ali. São sistemas complexos e dinâmicos que precisam ser entendidos como o todo que são. Italo Calvino definiu-as como sendo, à vez, máquina e corpo, artificial e ser vivo. A partir daqui, podemos enfatizar a sua natureza dinâmica, a criatividade que a envolve e a capacidade de inovação e de renovação que a cidade tem. Considerarmos uma urbe, ou um município, como um organismo vivo terá de ter em conta, também, aquilo que podemos designar como “externalidades negativas”. Na nossa cabeça, uma cidade traz-nos à ideia bulício, movimento, tráfego, poluição e mesmo alguma tensão, mas não há nada que a impeça de ser um local com espaços aprazíveis para viver, que proporcione o contacto com a natureza, animais, vegetação, pureza, calma, etc. A procura de um bom espaço para viver tem de contemplar o equilíbrio.
Uma cidade é um organismo vivo porque criativa e continuamente animada pelo fluxo de gentes, bens e serviços que circulam usando redes técnicas, económicas, energéticas e mesmo sociais. Ela é tão vulnerável como o é a vida. E é precisamente por essa vulnerabilidade que tem de ter capacidade de renovação, num processo de criação permanente.
A cidade é um constante fluxo. Avenidas, ruas, cruzamentos, esgotos, canos, cabos, etc. Se as redes técnicas (transportes, energia, comunicação) são interrompidas, por qualquer motivo, a vida na cidade é imediatamente interrompida. Um “blackout” paralisa uma cidade, do mesmo modo que o rompimento de um cano ou um acidente de tráfego, pode paralisar toda ou parte dela.
Mas não se define só como um sistema técnico. Ela é também um espaço de trabalho e de vivências, de encontros, eventos e relações sociais, favorecidos ou estimulados por redes socioculturais. Voltemos a Italo Calvino quando escreve que a cidade “é um lugar de trocas, como qualquer livro de história económica o comprovará — mas não vejamos essas trocas apenas como comércio e serviços, pois elas envolvem palavras, desejos e memórias”.
Mas uma cidade tem também de ser um espaço de participação, de exercício de cidadania. Este conceito não é recente. Foi definido por Patrick Geddes, há mais de 100 anos. É dele o princípio “pensar global, agir local”.
Chegamos, assim, a novos modelos de pensar a cidade globalmente, tendo sempre em atenção a necessidade de intervir localmente na resolução dos diferentes problemas que apresenta, bem como nas soluções mais adequadas. Ou seja, vivemos num todo que é global, mas não deixamos de viver e trabalhar localmente.
A cidade tem de ser facilmente entendível. Os procedimentos têm de ser normalizados e semelhantes. A urbe tem de ser montada, no seu todo, como uma entidade sem barreiras que impeçam o acesso a tudo o que uma cidade tem para oferecer. Tem de ser “inteligente” no modo como gere as diferentes funções que lhe estão acometidas, ser “inteligente” criando, com os seus munícipes, uma relação de cumplicidade. Deve ser capaz de comunicar com cada um dos seus habitantes: actualizando-os sobre os serviços que presta; sobre pagamentos e licenciamentos; sugerindo melhores rotas de modo a que se consiga descongestionar tráfego; mostrando o que a cultura tem para oferecer; prestando informações; aceitando requerimentos; etc. Em resumo: tudo o que seja relevante para a vida dos seus cidadãos. Estes, por seu lado, também devem manter os serviços camarários actualizados sobre problemas que surjam: notificando acidentes, quebras de fluxo nas redes de água ou electricidade, destruição de equipamento urbano, sugerindo soluções, etc. Tudo de modo fácil e funcional. Sem burocracias desnecessárias, nem outras complicações. A evolução de um município tem de ter obrigatoriamente em conta as necessidades de quem nele vive. Informação correcta e sustentada ajuda os decisores a gerirem o interesse de todos.
Numa cidade que se quer inovadora, todas as sinergias devem ser aproveitadas e postas a funcionar. Instituições financeiras, comércio e serviços, empresas, movimento associativo, cidadãos, todos a empurrar para o mesmo lado, na busca de melhores e inovadoras soluções que melhorem a qualidade de vida, tornando possível experiências urbanas mais inteligentes e continuadas.
As centralidades, que devem aparecer naturalmente e não de modo forçado, são de enorme importância. Centralidades onde vamos fazer compras, outras onde vamos fazer negócios, aquelas onde socializamos com os nossos pares, as desportivas, as culturais e as de lazer, todas elas necessárias pois factor de desenvolvimento.
O município inteligente tem sensores que lhe permitem reunir informação em tempo real sobre o modo como a energia está a ser utilizada e sobre o desempenho de outros activos. Informação que serve para monitorizar o que se passa de forma analítica, de maneira a desencadear operações dinâmicas, reduzindo consumos, gerindo tráfego, proporcionando recolha de lixos de modo assertivo e accionando manutenções. É assim possível gerir de forma eficiente apoiado em opções rápidas, acessíveis, limpas e seguras.
Conceitos como “big data”, “cloud computing”, “internet of things” não podem ser estranhos ao gestor do município. Com estas ferramentas, podemos fazer dos nossos municípios estruturas de administração menos burocratizadas, mais leves e muito, mas mesmo muito, mais eficientes. É agora, no presente, que construímos municípios de e com futuro. Municípios inteligentes e sustentáveis, que pensem o conjunto sem esquecer a individualidade, a realidade que cada um de nós transporta. Municípios que procurem a excelência na melhoria da qualidade de vida de todos.
O objectivo de qualquer gestão municipal tem de ser a excelência, a excelência que optimize a mobilidade de bens e pessoas, que atraia novos residentes e visitantes, atractiva para as empresas que já lá estão — bem como para as que queiram vir, que estimule o crescimento e a criação de riqueza, tendo sempre em perspectiva a sustentabilidade e as questões ambientais.
E isto consegue-se criando modelos apoiados em tecnologia inovadora que já existe. O paradigma actual, no que às nossas autarquias diz respeito, está desactualizado. É velho e gasto, e extremamente disfuncional. Por esse mundo fora, são inúmeros os exemplos de soluções que permitem aproximar o munícipe das equipas de gestão, tornando o modelo participado. Soluções que permitem poupança e uma melhor gestão de recursos. É só tirar o olho do umbigo.
4. “Mesmo em Raisam, cidade triste, corre um fio invisível que liga um ser vivo a outro por um instante e a seguir se desfaz, e depois torna a estender-se entre pontos em movimento desenhando novas e rápidas figuras, de modo que a cada segundo, a cidade infeliz contém uma cidade feliz que nem sequer sabe que existe” – Italo Calvino, in Cidades Invisíveis