Covid-19 está a provocar uma "recessão democrática" em África, alertam organizações
A covid-19 está a causar uma "recessão democrática" em África, a exacerbar "disfuncionalidades" de governação e a provocar um recrudescimento da violência e instabilidade em países que, segundo representantes de organizações internacionais, estavam no "caminho certo".
"Estamos a assistir ao exacerbar e ao revelar das disfuncionalidades de governação que existiam nas nossas sociedades e que estão a causar uma recessão da democracia", disse Elhadj As Sy, da Fundação Kofi Annan.
O responsável falava no painel "Gerir as consequências: retrocessos na democracia e nos direitos, e novos fatores de instabilidade" em África no segundo dia do Ibrahim Governance Weekend 2021, promovido pela Fundação Mo Ibrahim, que decorre em formato digital até sábado.
Desde os controversos prolongamentos de mandatos presidenciais na Guiné-Conacri e na Costa do Marfim, à violência eleitoral no Uganda e na Tanzânia, ao duplo golpe militar no Mali, à sucessão presidencial no Chade ou ao adiamento das eleições que desencadeou o conflito em Tigray, na Etiópia, Elhadj As Sy considerou que "todos são igualmente preocupantes".
"Todos têm de ser levados muito a sério. A extensão dos mandatos, através das alterações da Constituição, não é aceitável. As pessoas são empurradas para fora do processo democrático e, sem espaço para se expressarem, passaram a usar outros meios" como a violência, acrescentou.
Apontou o risco de as reivindicações dos jovens não estarem a ser ouvidas em países onde "mais de 70% da população tem menos de 35 anos".
"Pode ser um dividendo sobre o qual vamos construir ou pode ser uma maldição", disse.
No mesmo debate, Comfort Ero, diretora do programa para África do International Crisis Group, manifestou-se especialmente preocupada com a deterioração da democracia e da estabilidade na África Ocidental.
"Era uma região que estava no caminho certo para a democratização e está a retroceder. Houve investimento internacional significativo e a região era apontada como líder do processo para a democratização", disse, assinalando os dois golpes militares em nove meses no Mali, bem o regresso "à agenda" da Libéria "de uma forma que está a deixar muitas pessoas preocupadas", além dos já citados casos da Guiné-Conacri e Costa do Marfim.
Comfort Ero alertou ainda para um "arco de violência" associado a transições políticas em países como a Etiópia, Chade ou Sudão, onde o processo de transição continua "muito frágil".
"O panorama não é animador", adiantou, apontando, por outro lado, os exemplos positivos do Gana, África do Sul ou Maláui.
Intervindo também no mesmo painel, o diretor para África do Comité Internacional da Cruz Vermelha, Patrick Youssef, testemunhou "os efeitos devastadores" da pandemia em zonas de conflito, nomeadamente em Moçambique.
"África acolhe mais de 29 milhões de refugiados e deslocados internos, com recordes de deslocados internos na Etiópia, República Democrática do Congo, Burkina Faso, Mali ou Líbia", disse, assinalando que mais de 60 milhões de pessoas vivem em áreas controladas por grupos armados, com "enormes desafios" no acesso a tratamento e vacinas da covid-19.
"Por exemplo, em Moçambique 71% das estruturas de saúde estão completamente fechadas nas nove áreas mais afetadas pelo conflito em Cabo Delgado", disse, adiantando que o pessoal de saúde teve de fugir dos seus locais de trabalho devido à insegurança.
"São simples estatísticas que nos dão a ideia de como o impacto da covid-19 foi particularmente intenso nas comunidades atingidas pela guerra. Para estas pessoas, a crise de covid-19 não sucedeu a outras, antes somou-se a elas. Os esforços de mediação de conflitos estagnaram, o Presidente de um país morreu num campo de batalha", disse, numa referência à crise política no Chade.
"Preocupação" e "desilusão" foram expressões também usadas pelo presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, sobre as situações no Corno de África e na região do Sahel, bem como sobre a incapacidade de um acordo entre a Etiópia, o Sudão e o Egito sobre o enchimento da barragem do etíope no Nilo Azul.
"Estamos preocupados e um bocadinho desiludidos porque no ano passado tínhamos a impressão de que tinha havido progressos na região, principalmente na Etiópia. Foi um país com o qual tentamos fortalecer o nível de cooperação e o que está a acontecer no Tigray é dramático", disse Charles Michel, numa conversa "one on one" com o empresário e filantropo Mo Ibrahim.
O responsável europeu considerou "imperativo" que as tropas da Eritreia saiam da região, assinalando também a "gravidade" do impasse sobre as condições do enchimento da Grande Barragem Etíope da Renascença (GERD) a poucas semanas do início da segunda fase do processo.
"Os países e a região podem tornar-se vítimas desta instabilidade", disse, adiantando que a União Europeia quer ser "um observador ativo neste processo" para conseguir chegar a uma solução "legal e sustentável".
O Ibrahim Governance Weekend reúne políticos, especialistas e ativistas da sociedade civil, durante três dias, em formato virtual, para debater o impacto da pandemia covid-19 em África e o caminho para a recuperação.