Crónicas

E quem vigia os “vigilantes”?

Não sei se esta pequena crónica iria passar no crivo da nova censura, se acaso já estivesse em vigor (só em julho) a respetiva cartilha, que leva o pomposo título de “Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na era Digital” (ouçam, por favor, como ressoam as trombetas encadeantes da “new age” socialista). O documento, que pretende regular e vigiar a “desinformação” e as “narrativas” tidas por pouco patrióticas (ou seja, não amigas do governo), foi aprovado há menos de um mês na Assembleia da República — sem um ai, sem um clamor, sem um esboço do famoso sobressalto cívico, numa estranha unanimidade de quase “união nacional” (salvo breves abstenções inconsequentes), e assim também “assinado de cruz” (expressão de José Pacheco Pereira) pelo mais alto Magistrado da Nação!

A era digital, que todos, de uma forma ou de outra, habitamos, tem exigências específicas que o legislador, sempre visando o Bem Comum, procura acautelar. Mas, as boas intenções do Estado são, frequentamente, a pior das armadilhas para os governados. Já a Constituição do Estado Novo (1933) dizia que “a liberdade de expressão do pensamento (...) é um direito e uma garantia individual do cidadão”. Mas, a bem da nação, entendia que “leis especiais regularão o exercício da liberdade de expressão do pensamento (...) devendo prevenir, preventiva ou repressivamente, a perversão da opinião pública na sua função de força social e salvaguardar a integridade moral dos cidadãos”. Ou seja: vigiar condutas privadas, em vista da obtenção de públicas virtudes.

Não estamos assim tão distantes do que, agora, o virtuoso Parlamento lusitano definiu na Lei N.º 27/21, de 17 de maio, cujo hossana é evidente no Art.º 4º:

“Todos têm o direito de exprimir e divulgar o seu pensamento, bem como de criar, procurar, obter e partilhar ou difundir informações e opiniões em ambiente digital, de forma livre, sem qualquer tipo ou forma de censura...” Porém, como o diabo nunca dorme, eis que ele entra pela janela escancarada do Art.º 6º:

“1 – O Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação, nos termos do número seguinte. 2 – Considera-se desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos. 3 – Para efeitos do número anterior, considera-se, designadamente, informação comprovadamente falsa ou enganadora a utilização de textos ou vídeos manipulados ou fabricados, bem como as práticas para inundar as caixas de correio eletrónico e o uso de redes de seguidores fictícios.”

Podem dar as voltas que quiserem, mas fica assim claramente renovado, depois de quarenta anos de democracia, todo o reflexo censório sob a capa de uma moral da conveniência pública. De resto, é sintomático que “o pai” do diploma, antigo militante comunista entretanto convertido ao socialismo, tenha vindo justificar a lei, dizendo: “Não somos fascistas. Só queremos estimular os cidadãos a não engolir petas”. Ou seja: na melhor tradição orwelliana e a caminho de um futurível “Ministério da Verdade”, o Estado e o governo que o representa não nos impingem “petas” — cruzes! —, isso é trabalho de alguns espíritos perversos que operam na obscura selva das redes sociais...

Ora, falta dizer a esta gente, que nunca se libertou do tique estalinista, que os cidadãos não querem ser “estimulados”, apenas exigem que o Estado e o regime assegurem verdadeiras garantias de pleno exercício da democracia e da liberdade – mesmo a de emitir opiniões indefensáveis ou de incorrer no erro. O que cai sob alçada criminal, como tal deve ser avaliado e correr nas instâncias adequadas. Mas, não é de modo algum aceitável que novas ERC,s venham, por conveniência dos mandantes em exercício, arvorar-se em instância hermenêutica propensa a “vigiar e punir”, como diria Foucault, o que em cada contexto político tenham por “desinformação”: o que vem a ser isso, exatamente? E quem define, e em nome de que interesses, o que é “narrativa falsa” (por exemplo: a publicidade? o discurso eleitoralista?) E o que será, porventura, trazer “prejuízo público” aos “processos de elaboração de políticas públicas”? Pois, não se percebe ainda, mas alguém vigia, e previne desde já o (seu) futuro — é só concluirmos com o último ponto do mesmo Art.º 6º: “O Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública.” Ou seja: o Grande Irmão nunca dorme, está vigilante o tempo todo contra os mensageiros do mal, e vai ter um trabalho danado para formar e formatar toda uma legião de “boys and girls” capazes de gerirem com denodo as novas “estruturas de verificação” e atribuírem os “selos de qualidade”... à boa informação!

Já sabemos que somos, a toda a hora, cidadãos escrutinados, numerados, regulamentados, vigiados. Razoavelmente cumpridores e desejavelmente virtuosos. Sempre democraticamente e agora em modo digital, a Nova Verdade fica a pairar na sombra do Estado, que tudo tutela e vigia.

Entretanto, o velho problema permanece: e quem vigia os “vigilantes”?