Abocanhar o calhau (Reis Magos)
Erros do passado parecem não servir de exemplo aos decisores do presente. Persiste-se neles. A vítima agora é a orla costeira. Adversários políticos até se digladiavam, tendo como mote esta tentação de destruir o litoral. A direita que a esquerda acusava de destruir o património natural, depois a esquerda, no poder local, acusada das mesmas tentações. Também novas forças políticas, que não são direita nem esquerda, são tudo e não são nada, a bem das conveniências, cometendo os mesmos disparates. Adivinha-se, no global, para se eternizarem nas placas das inaugurações, por vaidades pessoais e anseios triviais.
Vem a propósito esta introdução devido a uma requalificação de um complexo balnear dos Reis Magos e do respectivo passeio marítimo que, nesta terra, de forma pomposa, se aplica o galicismo “promenade”. Nem me pronuncio sobre o timing. Se, no essencial, as obras em curso trazem melhorias, algumas intervenções pecam por ser disparatadas. E normalmente perde a natureza, perde o destino, perde a identidade da Região. Não me custa enaltecer o recuo a tempo de um projecto bizarro de uma piscina anunciada para o espaço, bem como a opção acertada de deslocalizar um evento gastronómico dali para o centro do Caniço. Mas não consigo entender o disparate que consiste em atulhar parte do calhau na curva maior da “promenade”, e impermeabilizá-lo em cimento, criando uma área de fruição que efectivamente é abrangente ao olhar, quase libertadora, mas não atende à ferocidade do mar. Será que um projecto desta natureza, com esta envergadura, não foi sustentado e arquitectado, tendo por detrás uma equipa de trabalho multidisciplinar, com diversas valências e sensibilidades, para avaliar estas opções? O calhau, toda aquela dinâmica rochosa, robusta, confere-lhe a protecção ideal da costa. É o basalto, conjuntamente com calhau que se forma com a erosão das rochas, que rechaça a força das ondas, e nele, por entre a sua porosidade, a água escoa. É na definição desta barreira natural, indestrutível, moldada pela dinâmica da natureza, que se faz a protecção da costa, sem custos de manutenção. A cobertura de cimento que o projecto preconiza, avançando parcialmente pelo calhau, atulhando-o de terras e outros entulhos na base, oferecerá à ondulação uma rampa para o avanço de massas de água que chegarão facilmente à “promenade”, quiçá aos jardins do Hotel Four Views Oasis. Com a agravante de poder arrastar utilizadores do espaço que aquela estrutura convidará na aproximação imprevidente ao mar. E este, quando revolto, irá reclamar aquela zona betonada, como o fez por aí, em tantos locais, como aviso. Quanto ao muro que ladeava a “promenade”, carecia de uma requalificação, porém, a sua substituição é igualmente discutível, porque o muro era de betão, em linha com o betão da estrutura da placa de todo o passeio, mantendo a mesma cor, o mesmo material, criando um conjunto mais bem integrado na paisagem. A protecção em varandim metálico é bonito? Talvez seja, mas um espaço de comunhão com a natureza pede opções com o mínimo impacte visual; com o mínimo de artificialização; e funcional. O muro anterior era passadiço de crianças conduzidas pela mão de pais protectores; era assento de pessoas para a contemplação do horizonte; era apoio aos desportistas; era memória. Era uma opção artificial, mas de impacte visual minimizado. A opção actual é artificial, tem impacte e não tem tanta funcionalidade. Muito mais cara que a reparação do que existia antes. É pena que se continue com apetência pela destruição da natureza, com opções urbanas, menos vocacionadas para espaços na transição com o natural.
Duarte Olim