Crónicas

Cores reais

FOTOGRAMAS

Esta semana centramo-nos num retrato da Rainha D. Amélia, provavelmente feito pela mão e aparelho fotográfico de Vicente Gomes da Silva, a 25 de junho de 1901, no local onde uma reprodução do mesmo é hoje visível: no antigo Atelier Vicente’s, hoje Museu de Fotografia da Madeira. No texto que o acompanha na exposição permanente da área do estúdio do Museu, com curadoria de Emília Tavares e Alexandra Encarnação, podemos ler que este é revelador da “forma entusiástica como a aristocracia efetuou a transição de gosto, da representação pictórica para a fotografia”, e que tendo esse “gosto” tido início com D. Luís I e D. Maria Pia, terá tido continuidade com D. Carlos e D. Amélia. Nesse sentido, “a designação de Fotógrafo Real passou a fazer parte do currículo de alguns dos mais prestigiados estúdios comerciais por todo o mundo, associados a várias casas reais”, representando esta imagem específica “a consagração do estúdio, bem como a sucessão do mesmo, uma vez que o título de Photographo da Casa Real, seria atribuído a Vicente Gomes da Silva, Júnior, em 1903”. Talvez por isso, esta fotografia me tenha feito pensar num retrato fotográfico do imperador brasileiro D. Pedro II – grande entusiasta pela arte fotográfica –, e num texto de análise do mesmo da autoria do historiador brasileiro Mauricio Lissovsky. Embora ambos tenham sido impressos sob o formato de cartões (o de D. Amélia com um formato um pouco maior que o tamanho médio das então tão em voga cartes-de-visite), o de D. Pedro II distingue-se do da rainha portuguesa pela sua dimensão experimental e anedótica, visto que, aí, Sua Majestade surge ao lado do seu duplo, ou seja, houve uma montagem ou dupla exposição da sua figura que faz com que surjam dois reis na mesma imagem, um sentado, outro de pé, a olharem um para o outro.

Sobre o formato da carte-de-visite, refere então Lissovsky: “colecionadas em álbuns, os cartes de visite eram a manifestação de uma utopia pequeno-burguesa. Diante de uma experiência cotidiana cada vez mais fragmentada e acelerada, onde os pertencimentos tradicionais começavam a esvair-se, o homem-de-bem do século XIX reconfortava-se no seu pequeno Novo Mundo de imagens, habitado não apenas por familiares próximos e distantes, mas, em pé de igualdade, por personalidades da política, da literatura, da ciência e da arte.” E acrescenta ainda: “utopia da visibilidade que se ergue em contraste com a de uma agenda oculta do indecoroso e do selvagem, o álbum de retratos representava o sonho de que todos estes homens distintos formavam uma sociedade que, graças à moral exemplar de seus membros, conduziria seguramente ao «progresso social». É por isso que as poses nos retratos do século XIX são tão repetitivas: elas visavam demonstrar a afinidade de caráter da humanidade (ao menos, da parte branca e europeia dela)”.

Foram portanto comuns os retratos fotográficos da aristocracia em que os seus protagonistas surgem como um tipo de cidadão, inscrevendo deste modo as personagens da realeza numa sociedade progressista e burguesa.

Nesse sentido, ambos estes retratos parecem remeter a uma iconografia em que a figura real não se distingue tanto assim de outros cidadãos (mais) comuns, contrastando com as elaboradas e altivas poses aristocráticas a três quartos da tradição pictórica precedente para, como no exemplo do retrato de D. Amélia, dar essencialmente lugar a uma pose de quase total frontalidade, sem grandes artifícios dignificantes da condição aristocrata. É esse o tipo de representação que a fotografia viria a democratizar ao longo do século XX, inclusivamente impondo-se, a par de outras estratégias de identificação como a biometria, como forma de controlo das populações, adquirindo particular expressão em documentos como o bilhete de identidade, que gradualmente se vai tornando obrigatório para todos. Em retrospetiva, ambas estas fotografias parecem conter um “adeus melancólico à monarquia”: na de D. Pedro II (também) pela forma como o monarca parece contemplar o seu próprio fantasma, na de D. Amélia (também) pela pose discreta numa cena “quotidiana”, e pelo ar sorridente mas talvez algo resignado da rainha. De facto, no Brasil, D. Pedro II é destituído a 15 de novembro de 1889 e, como bem sabemos, em Portugal, D. Amélia deixa de ser rainha consorte após o assassinato do marido, o rei D. Carlos, em 1908, partindo para o exílio pouco mais de dois anos depois, na sequência da implantação da república. O título de Photographo da Casa Real atribuído a Vicente Gomes da Silva Júnior não lhe serviu portanto durante muito tempo.

A realidade da realeza deixa então de ser real, tal como as cores desta imagem não o são especialmente (ou, pelo menos, em certa medida): trata-se de um processo de coloração da imagem que é posterior à sua ampliação. E é precisamente sobre a condição da cor na fotografia que falaremos na próxima semana.

Para aceder ao texto de Mauricio Lissovsky e a uma reprodução da imagem de D. Pedro II: https://www.iconica.com.br/site/a-fotografia-e-seus-duplos-parte-2/

Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.