Crónicas

O casamento do meu irmão

Eu estava lá quando levámos os miúdos da vizinhança a ver o bolo, todo branco como se fosse de casamento. O avô ainda era vivo e tu eras o preferido, não sei o que lhe disseste, mas lembro-me do nosso espanto assim que vimos o que estava debaixo da toalha. Nem parecia verdade, tinha contas prateadas a luzir por cima e, só para ter a certeza de que não era de fingir, meti o dedo no creme.

Depois fugimos da tia Conceição, que nos perseguiu como se fosse o demónio transfigurado numa mulher de meia idade, com óculos e cabelo com permanente. Sei que todos se esconderam a tempo, menos eu que, não fosse o avô, a tarde teria sido dolorosa. A tia queria que não se estragasse a festa, a tua festa e o teu bolo da primeira comunhão.

Sei que voltaste da igreja nesse domingo dentro de um fato branco, parecias um cantor da moda em ponto pequeno e a mãe e as tias estavam tão orgulhosas, decidiram ali mesmo que eras o mais bonito. A festa foi como todas as outras: corremos, bebemos laranjada e comemos o bolo com creme e contas de prata que se podiam trincar sem partir os dentes.

Foi a tua primeira festa e, se a memória não me falha, não faltei às que se seguiram. Lembro-me do teu jantar do crisma, tinhas um olho negro e a mãe ficou preocupada, ia ficar nas fotografias, mas contigo era sempre assim. Ninguém te tinha mandado espetar uma canavieira na cara, mas não tinhas remédio e lá foste para a missa de blusão e sapatos com berloques. E era tudo o que era preciso para ser alguém.

Sei que foi um jantar mais melancólico, a mãe estava doente, uma daquelas crises que a deixavam prostrada. E quando ela ficava assim não era a mesma coisa, às vezes dava a ideia que a nossa energia, a nossa vontade de brigar, discutir, gritar ou rir vinha dela. E quando isso acontecia nós corríamos para o abraço da tia Teresa. Temos uma fotografia os três, em cima do terraço. Ela tinha por nós um amor único e até nos deixou tirar o retrato. Às vezes penso que era uma promessa, uma coisa daquelas conversas sem fim entre a mãe e a tia, a nossa tia e sobretudo a tua tia Teresa.

Nunca soube o que diziam uma a outra, mas tinham o dom de nos acolher, de nos entender, de gritar e rir connosco como se a vida nos tivesse dado a oportunidade de crescer com o amor de duas mulheres inteligentes, que sabiam castigar e perdoar tão bem como nos penteavam e vestiam. E até o pai, que vivia aqueles dramas para ser aceite naquela família de mulheres, gostava dela, da nossa doce Teresa. E nunca lhe dizia que não quando era para sulfatar a vinha ou consertar o muro.

E lembro-me de a ver bordar na roupa as iniciais do teu nome antes de ires para a tropa. Custou-lhe aqueles meses sem ti lá em casa, sem o Duarte para cuidar, mas ficou contente com as fotografias que mandaste do juramento de bandeira em Mafra. Eu a esse não fui, mas obrigaste-me a ir a todos os dos teus recrutas ali no RG3. Fui a três, tu dizias que era importante e eu nunca consegui dizer que não.

Irmão é irmão e, na minha vida, tu estiveste sempre lá, já lá estavas antes de eu nascer. E isso é como saber que não se está sozinho no mundo. Enquanto estivermos por aqui a memória da mãe, do pai, da tia Teresa, das tias todas, do avô e da nossa infância estará viva. E, de certa maneira, não serei só eu na festa do teu casamento, mas todos os que nos fizeram gente lá por cima no Laranjal.