Crónicas

Calamidade(s)

A palavra aponta sempre para desgraça, flagelo, prejuízo público, catástrofe. Portugal tem currículo no “estado de calamidade”, donde não sairá tão cedo. Mas não é em vão que se faz tão prolongado uso de uma coisa destas: as sequelas acabam por criar uma situação de torpor prolongado da cidadania, que se manifesta em “calamidades” várias, no espaço e no tempo da nossa vivência coletiva. Para perceber isso, basta-nos rastrear alguns tópicos da agenda noticiosa mais recente: uma breve “revista de imprensa” indicia aquele “status quo” mais subterrâneo — afinal, o estado mais profundo do país e da governança que temos, a calamidade instalada e sem fim à vista:

— “Cadeias continuam a soltar condenados e 2850 já saíram a reboque da pandemia”. Como se explica que, não havendo já contágio nas prisões, o regime especial de perdão de penas continue em vigor, o número de presos libertados tenha excedido largamente o previsto e a Justiça continue a ser violentada por legislação “excecional”? Uma calamidade!

— “Concursos ‘viciados’ em 69% das nomeações para cargos de topo no Estado”. A prática de nomear dirigentes em regime de substituição vem de longe, mas o abuso tem permitido uma degradação que é transversal a toda a administração pública. Acontece que estagiar longamente para chefe sob o olhar amigo do contratante, traz largas vantagens ao futuro concorrente, mas não ao sistema: fica por viabilizar uma política do mérito e da competência na contratação dos melhores para funções públicas, sobrando o recrutamento de fiéis nas hostes partidárias. Uma calamidade!

— “Peritos avisam: Tragédia de Pedrógão pode repetir-se em breve”. Foi há quatro anos, morreram 66 pessoas que tentavam fugir ao fogo, um cenário horrendo a culminar anos de incúria com a floresta e desordenamento do território. Pouco mudou desde então, passadas aquelas ações mais vistosas para o telejornal. A falta de condições que atraiam à vida no interior e a desvalorização de atividades ligadas à terra e à natureza, só podem trazer a morte lenta do território, de que a desertificação e o fogo são consequências inevitáveis. O problema não se resolve com sanções, mas com conhecimento dos fatores e políticas concretas. São anos de devastação e pouca ação de fundo, enquanto o país vai ardendo mais e mais a cada verão. Uma calamidade!

São três exemplos calamitosos de um certo “ar do tempo”, mas podemos aduzir outros, sintomáticos: a maior câmara do país envia dados pessoais de manifestantes a embaixadas de países “problemáticos”, e isso é considerando um erro administrativo, ou “de balcão”, como descartou o nosso Primeiro; um partido faz birra e monta um arraial em plena pandemia contra o parecer da autoridade sanitária, e nada acontece; um ex-presidente do Constitucional diz que a PGR é um “agente encoberto à revelia da Constituição e da lei, como é próprio de um poder inquisitório”, e tudo prossegue mansamente na corte; uma sindicalista e militante acusa o Bloco de “assédio moral”, ao obrigar os seus funcionários a contratos de 40 horas, e exigir politicamente as 35 no público e no privado (já se conhece de há um século o discurso dúplice destes grandes timoneiros da revolução!), mas a Convenção silencia e só sai a propaganda que interessa; “Onde há muito dinheiro público há riscos de corrupção”, alerta (premonitoriamente?) o Presidente do Tribunal de Contas; Costa exulta com a aprovação da primeira tranche da bazuca, e logo pergunta à Presidente da União: “Now I can go to the bank?”

Eis o estado da calamidade, no Estado a que isto chegou!