O bom, o mau e a ópera-bufa
Infelizmente, na Madeira, o Presidente fez o discurso fácil. Fez o discurso que podia ter feito em qualquer parte do país. De costas para a Estátua da Autonomia, ignorou olimpicamente todos os enormes desafios que se colocam às Regiões Autónomas e, principalmente, a quem cá vive
As armas e os barões assinalados deslocaram-se à Madeira para festejar a Pátria. Mas essa não foi a única festa da semana. No congresso dos jovens socialistas, festejou-se, com entusiasmo, o discurso do próximo presidente do PS. Curiosamente, não foi Paulo Cafofo que discursou. No Bloco de Esquerda, a festa fez-se pela eleição da nova coordenadora regional e pelo anúncio da nova sede do partido. O local não foi revelado, mas consta que será numa pequena sala escura na sede do PS. Poupa-se na renda e evitam-se falhas de comunicação. Ainda assim, recomenda-se recato e respeito perante a nova liderança do Bloco. Afinal, não se deve rir no velório de um partido.
O bom: Carmo Caldeira
Filha de um médico com preocupações filosóficas e de uma mãe lutadora que escolheu dedicar-se à família. Foi assim que se apresentou Carmo Caldeira aos portugueses, no dia em que presidiu às comemorações do 10 de Junho. Podia ter-se apresentado de tantas outras formas. A sua vida pessoal e profissional ter-lhe-iam permitido. Médica de renome, diretora do serviço de cirurgia, medalhada pela Ordem dos Médicos, dirigente sindical. Suspeito que não o terá feito por modéstia louvável, mas com um objetivo claro. Carmo Caldeira falou por nós e como um de nós. Sem honrarias ou lugares comuns. Como madeirense, lembrou-nos que a Madeira é uma comunidade maior do que os residentes. Como médica, confortou-nos perante as limitações da ciência e de como, por vezes, a sua função não é dar respostas mas levantar dúvidas. Como cidadã, exigiu aos governos educação e sustentabilidade para a saúde e convocou-nos, a todos, a cuidar da nossa e da saúde dos outros. A médica madeirense pode, como confessou, sentir-se mais confortável com o bisturi na mão do que nos púlpitos, mas ali, em plena Praça da Autonomia, superou o desafio lançado por Marcelo. Ofereceu autenticidade às comemorações e aproximou o dia de Portugal dos portugueses. Carmo Caldeira fez o discurso que, mais do que a ocasião, os tempos em que vivemos exigiam. Por isso, merece todo o nosso reconhecimento.
O mau: Fernando Medina
Não haverá tradição tão portuguesa como a das histórias mal contadas. Dessa perspetiva, a delação lisboeta de manifestantes anti-Putin presta homenagem à tradição literária nacional. Não se trata de uma empolgante narrativa sobre uma conspiração internacional, mas a história repetida de um erro técnico, de um procedimento desatualizado, de um lapso dos serviços. A trama luso-moscovita é, na verdade, um drama burocrático. A ausência de conluio transfronteiriço é compensada por longas passagens de impunidade política, pontuadas com momentos de absoluta degradação das instituições democráticas. Toda a história da delação é feita de pormenores deliciosos. Medina não controla os e-mails da Câmara. O envio da informação é prática com mais de dez anos. Nunca houve preferência russa na delação, a informação era partilhada com todos – Israel, China e Venezuela. O ministro enviou e-mail à embaixada russa a pedir a eliminação dos dados. A culpa, afinal, é de um funcionário. Melhor ainda, a culpa é da lei. Até Marcelo absolveu, à distância, o Presidente da Câmara. É certo que Medina pediu desculpa, mas, até hoje, não assumiu responsabilidade. E esse é o capítulo mais grave desta história. O silêncio do primeiro-ministro, a passividade do governo, a impunidade do Presidente da Câmara. Tudo torna banal uma violação gravíssima dos direitos fundamentais. Pior ainda, atenta contra a nossa dignidade como cidadãos.
A ópera-bufa: O 10 de Junho na Madeira
Diz-se bufa, a ópera cómica. O espetáculo leve, com personagens burlescas e acompanhado de música ligeira. As comemorações do 10 de Junho, na Madeira, foram pouco mais do que isso. Uma festa agradável para quem veio e uma festinha no pelo de quem fica. Não se trata, sequer, de expetativa desmesurada para a ocasião. Afinal, as comemorações, estas e outras, são o que são. O protocolo, os jantares, os discursos, as paradas e os desfiles. Nada contra. O problema foi tudo o resto. A começar pelo Presidente da República. Quando quer, Marcelo é marcante. Conseguiu sê-lo no discurso do 25 de Abril, voltou a fazê-lo quando recusou a governação do país por especialistas ou até quando enfrentou Costa na gestão do confinamento. Infelizmente, na Madeira, o Presidente fez o discurso fácil. Fez o discurso que podia ter feito em qualquer parte do país. De costas para a Estátua da Autonomia, ignorou olimpicamente todos os enormes desafios que se colocam às Regiões Autónomas e, principalmente, a quem cá vive. É óbvio que, de Marcelo, não se podia exigir um discurso exclusivamente sobre a Madeira, mas a criatividade com que se esquivou de tudo o que tinha a ver com a autonomia regional impressiona. No dia seguinte, ficámos com a sensação que a República veio à Madeira dar uma volta de honra. À volta não faltaram as piedades habituais sobre a Pátria, o protocolo que se monta para o Presidente furar, a campanha municipal mal disfarçada, a absolvição à distância de Medina, tudo regado e abençoado com poncha. Este país não se inventa, mas festeja-se.