A bem da nação raspar, raspar
Faz hoje um mês que foi lançada a famigerada “Raspadinha do Património”, nome popularucho que visa o contributo da plebe para a sustentação orçamental — mais uma ideia brilhante daquelas cabecinhas pensadoras do Ministério da Cultura, incitando à participação em mais um jogo de fortuna e azar, mas a induzir na auto desculpabilização dos incautos, dado ser tudo por uma “boa causa”: afetar a verba ao Fundo de Salvaguarda do Património Cultural. Mas, então, não seria essa uma sã competência de um Estado alegadamente socialista, num digno exercício “cultural” com o dinheiro dos nossos impostos?
A coisa nasceu no dia 18 de maio: o Dia dos Museus certamente ficou com vergonha alheia pelo sonso aproveitamento da data para assim acorrerem à miséria instalada. Cinco semanas e muitas “raspagens” depois, ainda não vimos quaisquer números quanto aos “rendimentos”. Mas existem outros, e muito significativos, quanto à “doença”.
Segundo Luís Aguiar-Conraria (Expresso, 29 de fevereiro), as famílias pobres gastam proporcionalmente 20 vezes mais em lotarias do que as mais ricas. Jogar a dinheiro é uma prática extremamente viciante, mais ainda neste caso: fácil acesso, barata, resultado imediato. Talvez configure praticamente um imposto sobre a pobreza (e o desespero). A literatura médica disserta sobre comportamentos aditivos que podem gerar sérios dramas pessoais e familiares. Isso está estudado e comprovado. Em carta publicada no “The Lancet – Psychiatry”, dois psiquiatras alertavam para o crescimento exponencial do consumo de raspadinhas: “Entre 2010 e 2018, os gastos anuais aumentaram de 100 para €1600 milhões. €160 por português em raspadinhas. Para comparação, o gasto médio de um espanhol é de €14”. Ou seja, nesse ano de 2018, os portugueses gastaram 4,4 milhões por dia. Se pensarmos nos enviesamentos sociais e comportamentais que o jogo provoca e alimenta, seria de esperar que a instituição que detém o monopólio dos jogos promovesse o consumo responsável de apostas, e não — como acaba por ser o caso — “que se aproveite da pobreza e falta de sofisticação dos portugueses”: segundo um estudo da própria Santa Casa, relativo a 2019, que o jornal Público divulgou em maio, três em cada quatro jogadores são pobres. É, pois, com o seu magro pecúlio que a Ministra da Cultura espera recolher 5 milhões de euros ao ano, “para que cada um de nós se sinta parte de algo que tem de ser de todos” (corações ao alto!).
Felizmente que há vozes socialistas a combater o impudor. Francisco Assis, presidente do Conselho Económico e Social, que está a promover um estudo sobre o “vício do jogo”, em entrevista ao JN (30 de maio) não poupa nas palavras: “... é indecoroso que se ande a aproveitar a possibilidade de determinados setores ficarem viciados, para depois apregoar que se vêm resolver problemas sociais (...) os indícios que temos vão no sentido de considerar que a raspadinha é um verdadeiro crime contra os setores mais carenciados da sociedade portuguesa”.
Resta-nos gritar por socorro face ao politicamente correto da pública caridade ministerial: “envolver todos os portugueses” na “missão nacional de preservar o património”. Sim, é um alto desígnio, mas não seria bom não rasparem ainda mais o bolso dos mais pobres?
(PS — aqui, é mesmo um “post scriptum”: para não incorrer em eventual delito de “desinformação” suscetível de prejudicar “políticas públicas”, este artigo é publicado antes que, julho entrado, vigore a Lei N.º 27/21, de 17 de maio...)