Crónicas

Fotomontagens, além da verdade ou da mentira

FOTOGRAMAS

Há cerca de quinze anos, os debates sobre a fotografia centravam-se com particular incidência na capacidade das imagens nos iludirem, apresentando-nos como verdade uma mentira que provavelmente tinham engendrado. Tal deveu-se à massiva popularização da imagem digital, que não apenas se associou a uma produção fotográfica agora muito mais abundante e imediata que aquela da era da fotografia dita analógica (de material quimicamente fotossensível, como a película em rolo fílmico), como à sua estreita associação a técnicas de manipulação da imagem. De forma bastante simplista e redutora, nos debates mais generalizados, a fotografia analógica apresentava-se então como mais verdadeira, pura e fiel ao momento de captação da imagem que a digital, que se prestava a uma maior plasticidade e facilidade na manipulação do “real” representado, produzindo no espetador uma simultânea falsa crença e suspeita em relação ao visível. Tanto que esta nova fotografia foi questionada na sua própria essência: a imagem digital tratava-se ainda de fotografia ou era já outra coisa? As técnicas de manipulação da imagem, controlo de cor, luminosidade e contraste, retocagens e montagens diversas, passaram a ser designadas de forma também ela generalizada e aglutinadora através da palavra Photoshop, nome do mais popular software a que se recorria para o(s) efeito(s).

A imagem que aqui trago hoje pode ser considerada uma fotomontagem, e não apenas data da era pré-Photoshop como remonta ao já remoto século XIX. Estima-se que tenha sido feita entre 1890 e 1900 e que seja da autoria de Joaquim Augusto de Sousa que então se autorretrata enquanto busto. Nascido no Funchal em 1853, Joaquim Augusto de Sousa esteve desde a juventude ligado à prática fotográfica na ilha, captando diversas vistas da Madeira e da cidade do Funchal, e alcançando reconhecimento enquanto fotógrafo à escala nacional e internacional – obteve uma medalha de bronze na Exposição Universal de Paris, em 1889. Ainda assim, nas informações relativas ao seu percurso biográfico é descrito como fotógrafo amador. E de forma justa, se por amador tivermos em conta não a ausência de domínio e perícia num determinado labor ou técnica, mas o amor pelos mesmos, que no caso se traduziu num apurado conhecimento e capacidade de experimentalismo com as então recentes técnicas fotográficas. Para se representar fotograficamente enquanto busto assente num pedestal, o fotógrafo terá optado não pela sobreposição no laboratório, através da ampliação no papel, de duas imagens previamente expostas e reveladas em negativos diferentes, mas por uma mais rara forma de montagem. Trata-se de uma dupla exposição fotográfica em partes distintas de um único negativo em vidro, o qual terá sido posteriormente retocado para melhor se obter o efeito pretendido, nomeadamente, o fundo preto uniforme e a ausência de braços saídos da túnica.

Através do recurso a essas técnicas esta imagem nunca nos pretendeu mentir, constituindo-se antes como um espaço de criação, de ficcionalização em torno da autoimagem e parodização desse “eu” fragmentado do homem moderno através dos seus duplos anacrónicos. Não é no mínimo risível a estranheza que nos provoca a junção e contraste da iconografia clássica do busto, com o realismo moderno do retrato fotográfico? Nela o disfarce, a simulação, dão-se a ver no seu artifício, e o apelo à dignatária representação dos homens da antiguidade, mais do que simbolizar o estatuto também digno desse novo homem, o fotógrafo, ironiza-o.

Face ao exposto, o que nos revela hoje esta imagem? Em parte, que praticamente todos os tipos de manipulação hoje associados à fotografia digital eram já recursos mobilizados pelos fotógrafos praticamente desde a invenção da técnica (e sobretudo a partir da década de 1860) – como a montagem, a junção de impressões, a coloração e pintura, as raspagens e retoques dos negativos –, traduzindo-se por exemplo em: suavização de rugas e imperfeições do rosto, adelgaçamento de silhuetas, adicionar pessoas ou elementos a uma determinada cena, produção de painéis de imagens com proveniências muito distintas.

E para que nos aponta ela? Para um aspeto transversal à história da fotografia, ou melhor, às nossas impressões dela. Que ao contrário daquilo que por vezes julgamos ser (quase exclusivamente) fruto da nossa época (digital), a perceção da fotografia oscilou, desde a sua invenção em meados do século XIX, entre um efeito de verdade e de mentira, de indício e artifício, de evidência rigorosa, fidedigna e composição lúdica, derrisória, onde verdade e mentira podem nem sequer estar em jogo na superfície em vidro (negativo) ou em papel (positivo).

Ana Gandum com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.