Crónicas

E começou a bola

Em 1986, eu tinha 15 anos, gostava de ver filmes, não perdia o Telejornal, nem a novela brasileira que dava a seguir. Já não me lembro qual seria, mas talvez fosse uma com o Tony Ramos, a estrela da Globo naqueles anos. Os tempos mudam e dizer que aquele actor, particularmente peludo, fazia sucesso dá a medida dos anos que passaram.

E passaram muitos entre aquele Junho e este de agora, mas vivíamos na expectativa das alegrias que nos haveria de trazer a seleção do México, onde se jogava o Mundial de Futebol. O Hérman José até fez uma cantiga para acompanhar os homens que iam defender as nossas cores na esperança de fazer da segunda vez o mesmo que acontecera 20 anos antes, quando a televisão era a preto e branco e o Eusébio a nossa estrela, o nosso craque no Mundial de Inglaterra

Quanto a mim, adolescente de 15 anos, dividia o meu tempo entre os últimos pontos da escola e via imagens de jogos antigos na televisão. Lembro-me de estar feliz, era o último ano nos Ilhéus, despedia-me das pessoas com quem partilhara o recreio, o muro que dava para o campo de futebol e da velha casa, das árvores grandes e dos recantos onde os namorados davam beijos. Não que isso me trouxesse memórias especiais.

A escola, mais ou menos decadente, acolhera-me no pior da adolescência, em que fui quase sempre a gorda sem graça, com roupa esquisita e que tirava 100% a História. Ora ninguém queria saber das pessoas que tinham boas notas a História. A Matemática era muito mais cotada e eu, nos testes, não passava do 3. E também estava feliz por isso, por me libertar de equações e trigonometria.

E foi neste ambiente que o Mundial do México me encontrou, comigo a olhar para o futuro, para o secundário em que ia ser tudo diferente. A selecção partiu para Saltilho e era para ganhar tudo. Eu acreditava que sim. O Portugal de 1986 também, que os outros podiam ter craques e dinheiro, mas nós tínhamos a fé, a esperança dos pobres. Logo a abrir ganhámos à Inglaterra e foi a loucura.

Os jogos davam à noite e, de manhã, no autocarro para escola não se falou de outra coisa, que sim que aquilo é que era jogar à bola. E tínhamos equipa para passar a fase de grupos. Se a Inglaterra fora derrotada, com Marrocos e a Polónia seria canja. Mas, de repente, veio a greve dos jogadores, mais as exigências de prémios de jogo. E, dentro do autocarro, a conversa mudou, que aquilo era tudo gente incapaz de defender as cores da bandeira.

O azar trouxe mais azar. Bento, o guarda-redes, partiu uma perna e nós perdemos com a Polónia, depois caímos às mãos de Marrocos. Os heróis voltaram como revoltosos e grevistas, enquanto no México o Mundial continuava e nós víamos os jogos em direto. Não se podia ver muito mais, que canais só um e da programação sobrava pouco além do telejornal e a telenovela.

Depois da revolta de vários dias no autocarro, o povo conformou-se que, de certa maneira, nem os jogadores da bola eram assim tão ricos. E o Portugal que foi a Saltilho era mais ou menos como o que estava deste lado do mar. E soube bem ver a mão de Deus de Maradona tirar a Inglaterra de cena.

Ainda me lembro do meu tio Humberto no quarto da televisão a seguir a bola com os pés e a dizer que jogar à bola, que craque mesmo era o Maradona. O meu tio Humberto era o único que percebia de futebol, o único que gostava do jogo, o único que sabia que, por mais que o nosso coração quisesse, mesmo sem greve seria difícil passar. E era por causa de tudo, daquele Portugal desconjuntado de onde todos os que hoje têm mais de 50 anos vieram.

O país de hoje tem muitos defeitos, mas, aconteça o que acontecer neste Europeu, na bola somos muito diferentes e melhores.