Cumpriu-se o Amor...
Vivemos um momento único, a crise da COVID expôs, como nunca, a crueldade e a iniquidade da nossa sociedade, mas também a resiliência, a generosidade e a criatividade de tantas pessoas.
Perante a crise temos duas escolhas: voltar a um estado de pré-crise ou, com coragem, aprender, mudar e emergir melhores do que éramos antes. Não podemos baixar os braços, não podemos permitir que a dor que todos nós passámos tenha sido em vão. Atrevamo-nos a sonhar e a amar…
Porque a humanidade deve ser sinónimo de família, é dever de cada um preocupar-se com o bem comum e com a felicidade colectiva. Compete-nos por isso libertar a nossa sociedade materialista da idealização romântica da vida, revendo comportamentos e critérios a fim de se saber julgar o que é o bem, o bom e o dever.
Felizmente, Portugal, neste sentido, revelou-se um bom exemplo de fraternidade. Foi significativa a oferta de alimentos para os profissionais na linha da frente bem como para as famílias mais carenciadas. Foi extraordinária a solidariedade para com os profissionais de saúde que rapidamente viram gente anónima disponibilizar casas de férias e de fins de semana, para quem quisesse evitar regressar ao lar diariamente por receio de expor a sua família ao perigo. A generosidade demonstrada revela uma sociedade impregnada de altruísmo que não se esgota nos estratos sociais, nas etnias, nas ideologias políticas ou nas confissões religiosas. Uma vez mais, muitas associações souberam responder diante do problema de forma responsável e organizada, em muitos casos num trabalho concertado com as autarquias e outras entidades locais. A dignidade da pessoa humana está neste olhar o próximo como um irmão, deixando de lado as diferenças. Cumpriu-se o Amor. Os vários exemplos que surgiram de forma espontânia revelam que continua a valer a pena todos os esforços que eduquem a sociedade para o bem comum. Porém, a meta ainda não foi atingida. Falta continuar este exercício, integrá-lo num ritmo natural de modo a que não seja necessária uma calamidade para que cada um expresse o que de melhor há de si.
A pandemia, sendo uma porta para a mudança, não é um ponto de viragem radical. Exemplo disso foi o infeliz aumento da violência doméstica. Nos lares onde deveria imperar o amor e o espaço para a contradição. A maneira como se tira partido do tema não reflecte uma verdadeira luta contra este mal. Quando tocamos numa ferida deve ser para curar e não para provocar dor. Se assim for, é perverso.
Não podemos esquecer também que caminhando com os pobres, com os rejeitados e com os marginalizados, Jesus derrubou o muro entre a elite e a multidão, o muro que impedia o Senhor de estar perto do seu povo, no meio do seu rebanho.
Ao mostrar aos pobres e pecadores a proximidade de Deus, Jesus denunciou a mentalidade que põe a confiança na sua autojustificação, ignorando o que se passa ao seu redor. Questionava o tipo de mentalidade que, na sua pior manifestação, levava ao uso de termos racistas e insultuosos, aplicados aos que não pertenciam a determinado grupo, que pinta os migrantes como uma ameaça, que constrói muros para dominar e excluir.
Se o desemprego, sobretudo nos jovens e particularmente nos jovens com formação especializada, é uma das realidades mais importantes do nosso tempo, também, por outro lado, um dos fenómenos mais positivos e um sinal de esperança na actualidade é o voluntariado. Cada vez mais as pessoas percebem que é por aí que o mundo pode mudar e a consciência da responsabilidade social encontra o seu caminho. Banco da Paz, Banco dos Alimentos, Banco do Bebé, movimentos pró-vida, acolhimento e aconselhamento dos mais pobres, dos sem abrigo, dos imigrantes, dos doentes terminais… Há sinais de esperança!
Porque a caridade entendida supõe a educação da afectividade porque a afectividade que não é educada é egocêntrica, infantil, anda ao sabor do apetecer ou da repugnância, e assim não pode ser caridosa. O sentimento e a sensibilidade são coisas boas, o sentimentalismo é que nos escraviza.
De facto, pode dizer-se, que muito para além das simpatias e das antipatias, o amor adulto é querer e fazer o bem do outro. E isto exige três coisas: ser inteligente, ser gratuito e ser eficaz! Inteligente para perceber bem o que o outro precisa: que lhe fale, que me cale, que exija, peça, dê… Gratuito, porque a busca da retribuição tira a liberdade ao outro, compra-o! Eficaz, porque só com intensões o mundo não cresce, confunde-se e decresce.
Como diz o Papa Francisco: Focando-nos na terra, na habitação e no trabalho, recuperamos uma relação saudável com o mundo e crescemos ao serviço dos outros.
E, deste modo, transcendemos a mesquinha mentalidade individualista do paradigma liberal sem cair na armadilha do populismo. A democracia revitaliza-se graças ás inquietações e à sabedoria do povo que a constitui. A política pode voltar a ser uma expressão de amor através do serviço. Ao pôr a restauração da dignidade dos nossos povos como objecto central do mundo pós-Covid, fazemos com que a dignidade de todos seja a chave do nosso agir. Garantir um mundo onde a dignidade seja valorizada e respeitada por mediações muito concretas não é apenas um sonho, mas um caminho para um futuro melhor.
Francisco está convencido, como se depreende nas páginas de “Sonhemos Juntos”, de que a verdadeira mudança se realiza, não a partir de cima mas a partir das periferias, onde Cristo vive. Por detrás desta convicção está a rica tradição de reflexão da Igreja na Argentina, conhecida como “Teologia do Povo”.
Com o Padre Vasco aprendi que o pobre como ideal que aparece no Evangelho não é o pobre sociológico, o miserável. Contra esta pobreza é preciso combater. Falo daquele que é capaz de se despojar de tudo aquilo de que não precisa, do que vive a austeridade, o pobre é aquele que se compromete pelo mais justo. No sentido do Evangelho, os pobres e os humildes são os que vivem estas dimensões, sem as quais não há pobreza. O Evangelho quer acabar com a miséria que é fruto da injustiça, quer lutar pela maior partilha, quer lutar para que as pessoas saibam viver a felicidade do ser e não do ter. E isso os ricos não sabem fazer. Porque a pobreza evangélica é um ideal muito profundo, que coincide, de alguma maneira com a humildade.
Restituir a componente do sonho e da utopia a uma geração esmagada pela incerteza e pelos problemas quotidianos, faz parte integrante do projecto de recriação de novas solidariedades. Ressalta, de tudo o que fica dito, que a regeneração do tecido comunitário é a chave da solução. Por outras palavras, as novas solidariedades reclamam estratégias inclusivas, assentes no propósito de identificar competências uteis à comunidade em cada cidadão e, por conseguinte, fomentadoras da participação e do sentido de pertença.
Seria impossível dizê-lo melhor do que nas belíssimas palavras de Madre Teresa de Calcutá, impressas no seu cartão de visita pessoal que me entregou, quando visitou Macau, e calhou a mim recebe-la em nome do Senhor Governador.
O fruto do amor é o serviço
O fruto do serviço é a paz.