Guerra... e paz?
Atente-se nestas duas curiosas sentenças de Byung-Chul Han: “Em breve teremos vacinas suficientes para vencer o vírus. Mas não haverá vacinas contra a pandemia da depressão”; “Sobreviver se tornará algo de absoluto, como se estivéssemos num estado de guerra permanente”.
Não é preciso ser versado nos escritos do filósofo mais lido no mundo para sentir o alcance das suas palavras. Todos os dias percebemos a altíssima capacidade tecnológica de produção de vacinas e a inoculação em massa está a correr melhor do que o previsto, mas todos os dias se verifica a exclusão dos países pobres dessa onda global de imunização, com as mais altas instâncias humanitárias (a ONU e o Papa, por exemplo) a alertarem os governos, e a própria indústria, para a importância de alargar a vacinação aos países sem dinheiro e sem tecnologia: sem uma distribuição mais equitativa de vacinas, a erradicação do vírus será muito problemática num mundo globalizado. É neste contexto que se esgrimem sempre novos argumentos sobre a controversa questão das patentes. Mas, se algo já aprendemos nestes tempos conturbados, é que o egoísmo dos Estados e a lógica capitalista da indústria não serão ultrapassados até que, no médio prazo, o “estado da questão” traga maior discernimento e algum sentido prático da solidariedade num mundo massacrado pela pandemia: é preciso que as conquistas da ciência e a reativação da economia se reflitam mais igualitariamente na “aldeia global”. Só novas políticas poderão trazer alguma paz. Como corolário do medo e dos traumas por que todas as sociedades passaram, o que este ano e meio de dominação do coronavírus veio exacerbar foi exatamente essa pulsão de “sobreviver a todo o custo”, cada qual por si e esta comunidade primeiro que as outras, instalando, antes e depois das vacinas, um certo “estado de guerra permanente” — apesar dos bons exemplos de cuidado e entreajuda fortalecerem a crença na bondade humana. Mas, como é sabido, a guerra prolonga a política por outros meios. O vírus impôs um justificável endurecimento de fronteiras, mas no “cada um por si” dos Estados aparentemente libertos do jugo viral, não há “passaporte verde” que possa valer à necessária reconquista da economia comum. Veja-se o que se passa com a falsa dialética do “abre e fecha” entre países de uma Europa cada vez mais desunida: uma espécie de surda guerra civil silenciosa que o vírus instalou planetariamente, só veio agudizar velhos problemas e impasses instalados em matérias cruciais para a nossa sobrevivência comum, como a das economias predadoras que só fazem crescer a desigualdade entre comunidades e nações, sem atender aos alertas de um planeta cada vez mais exaurido e maltratado, a caminho de poder tornar inabitável o futuro desta nossa “casa comum”.
O sofrimento (individual e social) decorrente da pandemia enquanto pesadelo sem fim à vista — estirpes mais virulentas, propagação geométrica do contágio, demora na imunidade de grupo e, nos piores momentos, o colapso dos serviços de saúde, os duros confinamentos, os improvisados cemitérios de populações dizimadas — obriga a pensar soluções políticas inovadoras e solidárias face ao que está por vir. A depressão, das pessoas e da economia, implicará outro tipo de “vacinação” que, a não surgir, pela inércia ou egoísmo dos Estados, poderá empurrar-nos outra vez para os impensáveis abismos da convivência entre os povos: esperemos que a guerra não volte a ser a péssima continuação da política por outros meios.