Ainda a propósito da marquise do Ronaldo
O arquitecto não tem nenhum direito sobre a obra construída. Não é propriedade sua
Tem o proprietário o direito de alterar a obra que o arquitecto projectou? Eis a questão essencial que o recente caso da marquise do Ronaldo levanta. A resposta é sim. Tudo o resto é acessório: qualidade do projecto, curriculum do autor, inveja, sede de protagonismo, sugestões da Dona Dolores, etc. Não é para aqui chamada, portanto, a arquitectura do ARX Portugal, sobre cuja qualidade e honestidade não existem quaisquer dúvidas. O que importa sublinhar é que o proprietário pode, a seu bel-prazer, desde que cumpra a lei, alterar o que bem entender. Para o efeito, pode até contratar outro arquitecto. Com uma ressalva: antes de o fazer, deverá dar conhecimento ao autor inicial do que quer alterar. Este, por sua vez, se se manifestar contrário à alteração, pode desvincular-se do projecto, rejeitar a autoria e impedir o cliente de invocar o seu nome quando se referir à obra. A lei confere-lhe ainda o direito a ser indemnizado pelos danos sofridos, caso não tenha sido avisado, em devido tempo, das alterações.
Eis uma lei sensata. Não é concebível um empreendimento em que promotor e arquitecto entram em desacordo sobre o que deve ser construído na obra. Não é concebível uma casa que, para se afeiçoar à vida dos que a habitam (um filho que nasceu, uma avó que adoeceu) precise da autorização do arquitecto-autor para a adaptar às novas circunstâncias. O arquitecto tem direitos inalienáveis sobre os desenhos que produz: o pormenor de uma escada, uma casa ou um bairro (que ninguém se atreva, sem a sua expressa autorização, a construir, ou sequer reproduzir, o que está nos seus desenhos). O arquitecto não tem nenhum direito sobre a obra construída. Não é propriedade sua.
Dito isto, não deixa de ser intrigante ver certos arquitectos (alguns deles com obra visivelmente “inspirada” em desenhos alheios), serem os primeiros a chorar ao vê-la estropiada por uma marquise, um barbecue. A verdade, porém, é que o destino de toda a Arquitectura (com A grande) é ser pasto daqueles que a possuem, a habitam e a adaptam às suas necessidades. Para o comprovar, nada melhor do que ir em peregrinação a Roma, jornada indispensável para aqueles que, depois do choro, precisam de consolo. Aí chegados, recomendo que se deixem deslumbrar pelo esplendor do desfigurado Teatro de Marcelo que já foi recinto de espectáculos, fortaleza, habitação, comércio e até marmoreira. Durante dois milénios, os seus proprietários fizeram dele o que bem entenderam. O tempo, “esse grande escultor”, encarregou-se de fazer o resto.
Como bem dizia, nos idos anos oitenta do século passado, o meu sacrificado mestre (que apesar dos maus fígados tinha das artes e artimanhas do ofício um sólido entendimento): “– Não há paciência para o choro dos arquitectos”.