A herança
E lá me aventuro na arrecadação na esperança que o espírito prático da minha mãe nos salve
O advogado olhou para aqueles papéis e escrituras antigas e pediu mais, que aquilo como estava não servia. Ou eu me tinha explicado mal ou faltavam peças naquela espécie de puzzle que era a nossa herança, naquela sucessão do bisavô para o avô, mais o tio cambadinho, que era solteiro e não deixou filhos, a seguir entraram a minha mãe e as minhas tias até sermos nós, o meu irmão e eu, sentados em frente ao doutor.
A história da herança e dos papéis andou connosco desde miúdos. As minhas tias e a minha mãe gostavam de ter tudo escrito e, enquanto foram vivas, repetiram até à exaustação que ficara tudo “legal” desde que se fizera as partilhas no cartório de Câmara de Lobos. Não me lembro como foram dar a Câmara de Lobos, mas devia ter vantagem. Talvez fosse mais rápido e também se podia dar o caso do notário fazer os fatos na alfaiataria do meu tio Humberto.
O meu tio era pessoa de muitos conhecimentos, tinha a loja ali na Rua da Carreira, não falhava um jogo do Marítimo nos Barreiros, o que resultava em rapaziada amiga e muitos conhecidos. E acrescia a esta rede de contactos, o facto de ser um homem bom e dotado de muita paciência. De outro modo, não teria levado aquelas mulheres complicadas, dadas a conflitos e amuos para Câmara de Lobos a fim de acertar as partilhas por morte da avó, do avô e o tal tio, a quem poliomielite deixara manco de uma perna.
Eu guardei a memória de umas tardes aborrecidas do lado de fora do escritório, enquanto as minhas tias e a minha mãe assinavam papéis e os meus primos conversavam de assuntos importantes e adultos. Nessa altura, o meu primo Vítor já se deixara de me pedir para cantar a “Gaivota”, a que voava e que pela minha boca perdia qualquer semelhança com a canção libertária, mas sei que a minha prima Ana nos comprou uns doces para distrair. Lembro-me que fixei as divisões dos terrenos, pois, nos anos seguintes, sempre que havia discussão alguém dizia coisas “mas aquilo já não é teu”.
A união entre as irmãs nunca se dissolveu, nem mesmo no azedume das brigas e a herança continuou a ser de todos. A fazenda, a casa do meu avô e, de certa maneira, até a minha casa e a casa da tia Alice. A porta estava aberta, esteve sempre aberta e a um ponto que as partilhas e a herança só voltaram a reaparecer por morte do meu pai, quando foi preciso juntar de novo a papelada , mais ou menos dispersa por casas e gavetas e nos sentou de frente para o doutor, habituado a lidar com o quebra-cabeças da propriedade madeirense.
Então vamos lá ver quem é a Maria Alice, a Maria Teresa, a Maria da Conceição e a Maria Celina? E esta Maria Gabriela e o Francisco Fernandes Velosa? E eu a pensar que, afinal, o “ficou tudo legal” dos anos 70 tem que se lhe diga, que tenho de ir vasculhar mais caixas e que não quero pagar multa por atraso nas Finanças. O meu irmão apoquenta-se, a burocracia faz-lhe o mesmo que a matemática, dá como que um nó no cérebro. Isto resolve-se, sossega-nos o advogado, que já viu pior. Se encontrar mais uns documentos, é capaz de se resolver em bem.
E lá me aventuro na arrecadação na esperança que o espírito prático da minha mãe nos salve. Ela gostava de papéis e não desistia, nem quando a mandavam para trás vezes sem conta. Se fosse preciso, se houvesse vantagem, se fosse possível, a minha mãe era capaz de o fazer. A papelada emerge, está ali, com assinatura em letra inclinada e bonita. E há um peso que sai dos ombros, que a burocracia também me aflige e custa dinheiro. A herança segue para as Finanças, dentro prazo e sem apertos.
Vai na relação, os terrenos e a casa, a nossa velha casa do Laranjal. Não entram o nosso Tonecas, as 12 galinhas, as três rolas, várias árvores de fruto, nem as saudades que tenho deles, da inteligência da minha mãe e da poesia com que o meu pai vivia.