Crónicas

Nada de ilusões

Com a campanha de vacinação a correr muito melhor do que aventavam os prognósticos iniciais, mais os resultados de medidas sanitárias corretas, criou-se a ilusão de que o pior já passou e alguma “normalidade” começa a modelar o nosso quotidiano. Por todo o lado as expetativas aceleram, já se vai dando mais que dois passos em frente, a vida social regressa aos seus ritos, alguma alegria atravessa o ar e a noite, e a intuição de que talvez não voltemos atrás torna-se uma crença instalada. Mas, olhando à nossa volta e ao estado do mundo, percebemos que o otimismo exagerado pode vir a ser traiçoeiro. Afinal, mesmo com a boa nova das vacinas, a notícia da morte do vírus era obviamente exagerada...

Como há uma ano sublinhava o Papa Francisco, se algum ensinamento se pode tirar desta pandemia é que ninguém se salva sozinho. À escala dos indivíduos como das nações, é sempre em abraço solidário, ou por falta dele, que a saúde ou a morte podem ganhar terreno: “abraço” que é, na sociedade que juntos somos, uma solidariedade ativa da inteligência e do coração em favor do “amor ao próximo”, via de proximidade para alcançar o desígnio do “Bem comum”; mas também um “abraço” que é visão e ação política, que passa pela não ocultação da verdade das situações, pelo investimento em saúde, ciência e tecnologia, e pela criteriosa observância das recomendações técnicas e científicas do combate à pandemia. Levado a sério nas suas mediações e consequências, este “abraço” — pela sua, vossa, nossa saúde — não é nenhum choradinho aleatório sobre a desgraça que nos coube em sorte, mas, antes, a serena coragem de não baixar a guarda e lutar em conformidade — mais a lucidez política de decidir de acordo com a verdade!

Todos os dias temos belos testemunhos desse heroísmo do bom combate, como também vemos, ouvimos e lemos sobre políticas que disfarçam a morte.

Breves exemplos, a escalas diferentes.

Na ocidental praia lusitana, de novo nos píncaros o “bom aluno” da turma europeia; mas, eis que no concelho de Odemira deixou de ser possível varrer para debaixo do tapete do poder a existência de migrantes em quase escravatura, arrumados em condições miseráveis, trabalhando de sol a sol, subcontratados em esquemas de traficância mafiosa. Só agora perceberam? Mas já há um ano a bolha rebentou, algures no meio da capital turística, toda janota e fingindo não ver a vergonha dos “pretos” à janela e o covid impante na rua ali ao lado...

Mas, lá longe, o planeta está bem pior e percebe-se quanto o ocidente rico não pode ter a veleidade de salvar-se sozinho — o vírus mutante é o grande migrante do século XXI!

No Brasil do execrável Bolsonaro, o pico da pandemia vai durar meses e podem morrer 600 mil antes de baixar. Na Índia dirigida por outro guru da propaganda, morre-se aos 4 mil por dia, vende-se a alma por uma cama de hospital e algum oxigénio, e as piras funerárias são tantas que já está a faltar a lenha...

O que pode ligar estes casos (salvas as devidas proporções)

é que o encobrimento da realidade real, mais a negação da lucidez e do bom senso político por um poder incapaz de “com-paixão” com as populações, gera cenários de pesadelo e sofrimento de uma ordem tal, que a morte pode nem ser o pior dos males.

O mundo é hoje uma pequena aldeia e não vale a pena embandeirar em arco com a ilusão de um mal longínquo demais... na casa do vizinho. A verdade liberta, a propaganda é cárcere. Um poder que não ajuda a salvar, ajuda a morrer.