Crónicas

Pelo céu, chegados ao mar

FOTOGRAMAS

Inicia-se este espaço de textos sobre e a partir de fotografias através de uma imagem que, aparentemente, não remete para a actualidade nem mesmo para o aniversário de uma efeméride.

Pois foi já no passado dia 22 de março que se assinalou o centenário da primeira ligação aérea Lisboa-Funchal.

A travessia foi feita por Gago Coutinho, Sacadura Cabral e Ortins de Bettencourt, acompanhados do mecânico Roger Soubiran. Esta viagem é tida como um ensaio para a mais sobejamente conhecida grande travessia aérea do Atlântico Sul, que decorreria no ano seguinte sob o comando de Gago Coutinho e Sacadura Cabral. A viagem de sete horas e meia entre o Tejo, em Lisboa, e a baía do Funchal, visava testar instrumentos de navegação que se terão revelado valiosos para a orientação nos céus. Sim, o inédito era o feito de se cortar distâncias pelos ares, de voar, mas o sucesso da viagem media-se, não pela chegada a terra firme, mas pelo planar nas águas calmas de um porto de abrigo. O hidroavião Felixtowe F3 da Aviação Naval Portuguesa marcará presença, nos dias seguintes à sua chegada à ilha da Madeira, nos céus da costa sul – foram feitas aí algumas passagens aéreas. Mas é sobretudo visível na baía do Funchal. Ao fazer-se presente nessas águas e passando a habitar o imaginário visual dos funchalenses, rivaliza ou confraterniza com outros colossos mais antigos ou seus contemporâneos. Paquetes e vapores como o Copérnicus, o Malange, Cuyabá, ou o Ruy Barbosa, que nos fazem hoje derivar na sonoridade dos seus nomes e levaram então, também ao outro lado do Atlântico, milhares de emigrantes madeirenses.

Em 2021, e ao contrário do que tínhamos vindo a assistir nos últimos anos, os colossos fazem-se sentir mais raros no horizonte da costa sul (e norte) da ilha. Aliás, no mundo inteiro. A sua fugacidade talvez tenha tornado os ares um pouco mais respiráveis e os mares um pouco mais limpos. A sua fugacidade é também um sinal de angústia, mais ou menos consciente, para muitos dos que dependem do turismo para viver. Mas a sua aparição mais rara desperta em nós um outro tipo de atenção. Enquanto ponto de fuga na linha do horizonte, avistar um avião dá-nos agora uma melhor percepção da dimensão do empreendimento, esforço e matéria que toda a viagem, ligação, travessia, implicam.

Ana Gandum - com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.

*Imagem: PERESTRELLOS PHOTOGRAPHOS | Hidroavião da primeira travessia aérea Lisboa-Funchal, na baía  do Funchal| 22/03/1921 | 8,7 x 13,9 cm | Negativo simples, vidro | Gelatina  sal de prata | MFM-AV, Inv. PER/2270| Em depósito no ABM