Flashes
Cedo, sol radiante e café tomado, a Márcia insiste que eu leia a crónica “Ceuta”, de Gonçalo M. Tavares, na edição do semanário Expresso. Leio-a, emocionado. Um escrito composto de corpo e alma, na transfronteira dos dramas humanos da migração, os lados complexos da problemática, a metaforização tanto das botas militares na areia como dos homens-peixes da “natação desesperada”. A cartografia aduzida da ordem e do caos, na tessitura gravosa de quem escreve e de quem lê e de como as letras, ainda que intermitentes, iluminar possam...quais faróis. A Márcia rematou: linda de doer, a crónica. Doloroso também este tempo, na sua pendular dinâmica do nítido e do desfocado!
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Hoje, presente do indicativo, vou à manifestação na Alameda Dom Afonso Henriques, em Lisboa. São estas as três razões: (i) estar ao lado da Márcia nos brados existencialmente históricos, (ii) solidarizar-me com o Povo Brasileiro, que me é irmão, e (iii) reafirmar o meu repúdio à extrema-direita (o Doutor Fausto que assombra) no Brasil e em qualquer parte do Planeta. Isto, para além das razões explicitadas na convocatória do #PortugalDenunciaBolsonarogenocida...
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Cabo Verde. Ei-las (que me parecem no horizonte do previsível), palavras-chave: (re)formatação e (re)construção. Há inevitáveis obstáculos estruturais, com as conjunturais adicionadas, para enfrentarmos nos próximos anos. A par disso, há algumas fragilidades institucionais que não são tão abstratas como aparentam. Vão ser tempos exigentes, os quais devemos repensar a partir da problematização dos consensos de partidos, dos pactos de regime, do horizonte limitado de ciclos políticos, utilizando todos os capitais, inclusive sociais e culturais. Vamos todos (em vontade mobilizada)...seguir em frente.
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Mais 100 mil doses de vacinas foram disponibilizadas pelo Governo da Hungria às ilhas. Devemos louvar e agradecer o gesto. Antes de mais, porque ajudam a salvar vidas neste tempo de pandemia do novo coronavírus. Ademais, porque, em tempo de assaz emergência sanitária, temos de ser pragmáticos com todas as letras, olhando para a vacinação como uma das grandes e necessárias prioridades. De tal forma que até me lembrei de uma das máximas de Deng Xiaoping (‘o kota lá da China’, como diria o Mito): “Não importa a cor do gato, desde que cace o rato.”
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No relógio da parede, contam as horas e não o pêndulo a oscilar ora para a direita, ora para a esquerda. O que conta é o tempo e dele não sermos anacrónicos. E a geringonça, o cuco mecânico que abre o bico e move as asas hora a hora, o artefacto da cadeira de baloiço em casa do meu avô, a espinheira tísica desafiando a flamboyance da acácia-rubra na vizinhança, a novela “O Crime do Largo do Hospital”, de Juvenal Cabral, lida pela minha mãe, e, andando tudo ligado, o conto “O Velho André”, de Haideia Avelino Pires, lido pelo meu pai, a fundura alhures na infância, o tempo cada vez mais desfocado, visto pelo retrovisor. Aqui, no trato com a palavra e embebido de solidão...como uma esponja.