Crónicas

Privado

Considerar que a gestão dos assuntos públicos não pode ser feita do mesmo modo que a dos privados porque isso seria lesar a democracia, não faz nenhum sentido

1. Disco: está aí “Intruder” de Gary Numan. Foi com ele que começou o meu interesse pelo electro-pop, nos idos anos 80. Uma relação apoiada no universo quase que distópico criado por Numan, ao longo de todos estes anos. Um disco para apreciadores.

2. Livro: se há coisas de que gosto muito de ler são distopias. “O Conto da Aia”, de Margaret Atwood, é um dos melhores livros que li do género. Um verdadeiro clássico incrivelmente bem escrito, uma visão aterradora de um futuro onde a mulher se anula e o sexo serve essa mesma anulação. E, no entanto, não é nada que se não consiga ver hoje, em muitos países, onde persiste o radicalismo islâmico. Não pretendendo ser desmancha-prazeres, preparem-se para um final inesperado.

3. Nos tempos que correm, o sector privado assume uma importância crescente no todo em que vivemos. Longe vai o tempo em que o sector público prevalecia. Na devida proporção e escala de intervenção, para o progresso e desenvolvimento, os dois sectores devem caminhar de mão dada, pois nenhum deles por si pode conduzir um país no caminho do sucesso, da criação de riqueza e de equidade.

Comecemos por definir o que é cada um, de modo simples, evitando o simplismo. O privado é o sector da economia que compreende os negócios que são propriedade, administrados e controlados por indivíduos. O sector público é composto pelos serviços públicos e por várias empresas de propriedade e administradas pelo governo ou que orbitam em torno do Estado.

Já aqui, e por várias vezes, tive a oportunidade de debruçar-me sobre o Estado. Feita a distinção entre os dois sectores, foquemo-nos então, mais, no privado.

As empresas do sector privado são divididas com base na sua dimensão, como micro, pequenas e médias empresas e grandes empresas. No caso português, cerca de 99% do nosso tecido empresarial privado é composto por PME’s. Estas empresas procuram obter lucro e isso não tem nada de mal, visto que mais lucro implica o pagamento de mais impostos, directos e indirectos, ao longo do processo. Daí, menos impostos, poder significar mais colecta, o que é outra questão a que voltarei noutra altura.

As empresas fornecem serviços e produtos procurando que estes tenham qualidade, para assim poderem suprir as necessidades que o mercado (que somos todos nós) tem, de modo a sobreviverem suportadas em sã e saudável concorrência.

No privado, que também tem muitos defeitos ou não fosse gerido por homens, privilegia-se o mérito e a capacitação que resultem em desempenhos eficientes. Ninguém emprega um funcionário que tenha pouca ou nenhuma eficiência. Qualidade de desempenho implica estabilidade no emprego e promoção. Claro que me refiro a empresas de gestão qualificada e eficiente. Empresários sem escrúpulos também existem e, normalmente, desaguam em empresas carregadas de problemas e com fim previsível. O melhor que uma empresa pode ter é os seus recursos humanos.

No sector privado, a qualidade deve sobrepor-se à quantidade, o talento é encorajado, os erros têm pouca margem de aceitação, o bom desempenho individual é requisito indispensável, não há monotonia de procedimentos dado que a busca de maior e melhor produtividade é constante, a corrupção é residual, porque desnecessária.

Embora, a muitos, isso faça impressão, já se torna um cliché considerar que o sector público seria melhor se fosse dirigido do mesmo modo que o sector privado. Empresas de sucesso têm estruturas de funcionamento altamente democráticas. Por isso, considerar que a gestão dos assuntos públicos não pode ser feita do mesmo modo que a dos privados porque isso seria lesar a democracia, não faz nenhum sentido.

Sim, eu sei que ao sector público está acometido um modelo de gestão que visa o interesse comum, as necessidades públicas e o bem-estar geral. Um modelo sustentado no compromisso político entre diferentes maneiras de ver, de modo a propor soluções equilibradas que atendam às necessidades das empresas, dos grupos de interesse e dos indivíduos.

Isso não significa que o Estado tenha de ser um paizinho de todos nós. Pequeno no tamanho, eficiente e altamente fiscalizador do que decide, é o que precisamos que o Estado seja.

4. Não me vou cansar de escrever que, em Portugal, as micro, pequenas e médias empresas, representam 99% do tecido empresarial, sendo que as micro são cerca de 96% desse valor. São empresas geridas, na maior parte das vezes, de modo informal por quem nelas é, também, trabalhador, têm uma falta crónica de liquidez e dificuldade de acesso ao crédito. Com tudo isto, imaginem-se os horrores que esta pandemia representou para estas empresas. Fomos atingidos por uma crise sanitária nunca vista que levou os governos a pararem a economia ou a pô-la a trabalhar a velocidade reduzida. As consequências económicas foram, e são, dramáticas. No entanto, às que tentam sobreviver, admire-se-lhe a resiliência.

Não vou aqui esmiuçar uma certeza: que os apoios dados a estas empresas foram muito poucos. Claro que isto é uma percepção minha e vale o que vale. Como o Governo Regional não põe cá fora os números e os nomes de quem foi apoiado com o nosso, dos contribuintes, dinheiro, ou com o aval governamental — que no limite dá no mesmo, fico com a minha ideia.

No entanto, esta crise de enormes dimensões aguçou o engenho de muitos, que conseguiram dar a volta, apoiados em práticas inovadoras, em atitudes colaborativas agregando meios e vontades, e transformando o que se tornou disfuncional. Perder o “sentido de viajar à lua” e concentrar-se no entendimento do meio envolvente e das circunstâncias, foi fundamental para sobreviver. Novos canais de comunicação, levar o produto ou o serviço até quem dele precisa, procurar e criar visibilidade, foram caminhos experimentados, muitos deles, com grande sucesso.

Resta-nos admirar quem porfia, quem resiste apesar das contrariedades, quem quase cai e consegue erguer-se de novo, apesar das incertezas.

5. Começou a campanha eleitoral autárquica da falta de ética e de moral. Misturam-se eventos governamentais com eventos de organizações que o não são, onde, como milho quente, saltam candidatos pipoca que não se percebe o que estão lá a fazer.

Não há sentido de verticalidade e vale tudo, nesta espécie de Sucupira de politiquice sem nível, conduzida pela mão de gente sem princípios.

Que VIVA ODORICO PARAGUAÇU.

Que a história, nas urnas, acabe da mesma maneira.

6. Na América Latina há uma expressão antiga que diz: “obedezco pero no cumplo”. Em português, “obedeço, mas não cumpro”.

Lembro-me disto, sempre que quem nos governa debita decretos, regulamentos e leis sem pés nem cabeça. O que acontece, quase diariamente, e que depois ninguém cumpre…

7. “Somos nós que forjamos as correntes que usamos nas nossas vidas.” — Charles Dickens