Querem acabar com o Centro de Desenvolvimento da Criança. Vamos permitir?
Estamos perante o desmantelamento de uma equipa treinada para responder às necessidades de crianças que precisam de cuidados hospitalares diferenciados e que agora são afastadas do hospital
Não sei se conhecem o trabalho que é desenvolvido no Centro de Desenvolvimento da Criança. Surgiu da vontade de fazer convergir sinergias em torno do diagnóstico e acompanhamento do desenvolvimento de crianças que têm perturbações do neurodesenvolvimento – e que vão desde as perturbações comportamentais, da comunicação, ao défice cognitivo ou perturbações do desenvolvimento psicomotor, entre outras.
Foi em 2000 que a Pediatra Helena Cabral Fernandes e a Fisiatra Rita Filipa Martins materializaram, com o apoio dos diretores de serviço de então, o Dr. Orlando Magro e a Dra. Antonieta Relvas, uma unidade que reuniu uma equipa multidisciplinar para melhor responder às necessidades destas crianças. O acompanhamento terapêutico necessário, desde que devidamente diagnosticado, acontece desde o nascimento – através do apoio que é prestado à neonatologia.
Em 2008, o Centro de Desenvolvimento da Criança passou finalmente para o Hospital Nélio Mendonça, para uma ala com instalações desenhadas de raiz para as intervenções necessárias junto das crianças. A equipa multidisciplinar, que teve formação específica, é constituída por uma assistente social, uma educadora, uma fisioterapeuta, duas terapeutas ocupacionais, terapeutas da fala, duas psicólogas e uma enfermeira de saúde infantil, que trabalham de forma muito estreita e articulada com o serviço de pediatria, com o serviço de medicina física e de reabilitação, com a pedopsiquiatria e outras valências.
Este projeto foi e é tão bem sucedido que serviu de inspiração para a constituição do Centro de Estudos do Bebé e da Criança, do Hospital D. Estefânia, em 2017.
Em 2021 está em curso uma ação de despejo do Centro de Desenvolvimento da Criança do Hospital Nélio Mendonça. As terapias e a psicologia receberam ordem de marcha e, com elas, as famílias e crianças que são seguidas no Centro. Segundo os números avançados pelo SESARAM, atualmente o Centro presta cuidados a 1841 crianças de toda a Região, sendo que muitas delas têm terapias entre uma a três vezes por semana.
As terapias são exiladas no Centro de Saúde de Santo António, longe da neonatologia, da unidade de pediatria (onde se insere o Centro de Desenvolvimento da Criança), do Serviço de Medicina Física e de Reabilitação, e de todas as outras unidades que estes bebés e crianças precisam para uma intervenção articulada e mais facilitadora para o dia-a-dia desta famílias. Por exemplo, com este desmantelamento em curso, as consultas das especialidades médicas dificilmente continuarão a ser agendadas para os dias de terapia, como acontecia até agora, o que evitava maior transtorno na vida dos pais e mães destes bebés e crianças. Mas os problemas desta decisão, que se afigura burocrática e desfasada da realidade da importância do serviço prestado, não se ficam por aqui. A verdade é que uma boa parte destas crianças padece de problemas ao nível psicomotor, o que significa cadeiras de rodas ou crianças transportadas ao colo. Ora, é público que o estacionamento das imediações do Centro de Saúde de Santo António é bastante problemático, pelo que se pode perceber as dificuldades acrescidas que estas famílias enfrentarão.
Estas alterações profundas não se ficam por aqui nem atingem «apenas» o Centro de Desenvolvimento da Criança. Por exemplo, os serviços de terapia da fala, que eram oferecido pelos vários Centros de Saúde do Funchal, passam também para o Centro de Saúde de Santo António. Há pais e mães que para poderem manter as suas crianças na terapia, terão de apanhar dois e três autocarros, algumas delas com crianças sem autonomia psicomotora. Percebe-se, por isso, as razões pelas quais esta decisão preocupa e desespera as famílias envolvidas.
O pedido de esclarecimento público que fiz, no dia 27 de maio, foi imediatamente respondido através de comunicado. Segundo o SESARAM, esta mudança do Hospital Nélio Mendonça para o Centro de Saúde de Santo António implica um alargamento do horário de atendimento, contratação de mais recursos humanos, mais espaço e um alargamento da idade das crianças abrangidas.
Esqueceu-se de dizer que o alargamento do horário de atendimento, à partida, não se prende com o espaço, mas com os turnos de trabalho dos e das profissionais que compõem a equipa multidisciplinar. Invoca a falta de espaço, mas omite o facto de ter sido o SESARAM a reduzir o espaço de que o Centro disponibilizava para cerca de metade para «acomodar» as consultas de ortopedia e cirurgia de adultos que funcionavam na antiga consulta externa. Portanto, a falta de espaço atual deve-se a decisões prévias que invadiram o espaço do Centro e misturaram numa ala pediátrica consultas para adultos. Para além disso, as informações disponibilizadas relativamente ao reforço de recursos humanos da equipa não são claras: ao certo, quantas novas contratações? Exatamente quantos/as mais médicos/as (e que especialidades), quantos/as mais técnicos/as (e que especialidades), quantos/as mais psicólogos/as?
O que o comunicado não diz é que querem acabar com o espírito do Centro de Desenvolvimento da Criança, nomeadamente com a articulação harmoniosa das várias valências num espaço em que as várias especialidades, intimamente relacionadas com as intervenções terapêuticas, estão fisicamente perto.
Acredito que exista falta de espaço para outras valências do Hospital e por isso decidiram sacrificar o Centro e as 1840 famílias que dele dependem.
A verdade é que todas as especialidades médicas se manterão no Hospital Nélio Mendonça. A verdade é que as terapias serão deslocalizadas para o Centro de Saúde de Santo António. Dificilmente isto oferece melhores condições de trabalho para a equipa multidisciplinar, dificilmente isto oferece melhores condições às famílias. Estamos perante o desmantelamento de uma equipa treinada para responder às necessidades de crianças que precisam de cuidados hospitalares diferenciados e que agora são afastadas do hospital. Cabe-nos a nós não permitir que isto aconteça. Vamos consentir que isto aconteça?