Crónicas

Dunas são como divãs

Portugal pode estar vacinado, mas ainda não é maior. Cumpre pois anunciá-lo a todos os ingleses à chegada no aeroporto

Tenho grande apreço pela cultura britânica do espaço público. Esse apreço dedica-se, muito especialmente, aos seus sinais, tabuletas e letreiros, que colocam por todo o lado com uma precisão matreira e inteligente.

É uma daquelas coisas só aparentemente irrisórias. Em Inglaterra, qualquer espaço é orientado por instruções correctas e concretas, sempre com um “please” semi-irónico. Num museu, por exemplo, deve circular pela direita. Seguir o trajecto da exposição. Ficar a uma distância adequada do quadro. Evitar tapar as pessoas atrás de si. Não fotografe as obras (por favor), estraga os pigmentos. Não se encoste na parede. Aproveite o banco para descansar.

O mesmo nos jardins. Pratique desporto nos locais designados. Não pise a relva. Evite ouvir música alta. Faça refeições nas mesas. Arrume o lixo. E é neste desdobramento modesto do gesto que os nativos vão aprendendo a não ser alarves, e assim praticar o primeiro mandamento da cidadania.

Já em Portugal, a sinalética é símbolo e prova da decadência da autoridade. Se a instrução deve ser clara, pública e racional, o sinal nacional é obscuro, furtivo e formalista. Começa por presumir que o infractor anda com as leis no bolso. Nas cercas deste país, não se escreve “proibido entrar”. Prefere-se a impenetrável advertência “artigo 191.º do Código Penal”. O mesmo para o “proibido estacionar”, frequentemente substituído pelo “artigo 49.º do Código de Estrada”. Não se compreende o que é proibido. Mas fica a saber-se que é uma questão de Estado.

Nos parques públicos e outros lugares do estilo, a táctica é ainda mais torcida. A polícia, a guarda, a Câmara, ou os escuteiros colocam uma placa monumental à entrada do sítio. É a Constituição do Parque. Nela se explica, em letra muito pequenina, o exaustivo regime em vigor naquele território. Assim pendurada a receita total da convivência, em todas as suas generalidades de detalhe, a autoridade pode respirar de alívio: “já não está nas minhas mãos”! É um pouco o que sucede com os “Termos e Condições”, de cada vez que se subscreve um serviço novo.

Como explicar este desprezo? Simples. Não é para levar a sério. Não sendo para levar a sério, autor e intérprete escusam de se desgastar no encontro das respectivas vontades, ou na realização do interesse público, e podem concentrar-se no que realmente os deleita. Para quem escreve a placa, o prazer está no exercício caprichoso e abusivo de um poder nanico. O clímax, para ele, está em armar-se em Jorge Miranda de Monsanto, e receber os visitantes com uma lista de prescrições do tamanho de um romance modernista. Para quem lê, o prazer está em desdenhar uma autoridade feroz, e escapar-se-lhe com engenho. O melhor que pode acontecer é ver-se sujeito a tantas regras quanto consegue consabidamente ignorar. Escrever a Constituição do Parque é então um prazer só comparável ao de se borrifar para ela.

Vem isto a propósito, claro, das regras de Covid-19 desta época balnear. Assim de repente: uso obrigatório de máscara nos acessos, restaurantes e paredões; toalhas estendidas a pelo menos 1,5 metros, guarda-sóis e toldos a 3 metros. Há um semáforo na praia, em função da ocupação. E raquetes ou futebol só se o sinal estiver verde. Com multas entre 50 e 100 euros para quem incumprir, e até mil euros para os concessionários que desrespeitem (?) a lotação máxima.

Não houve ainda um tumulto. Mas só porque já se convencionou, tacitamente, que é para gozar o prato. Os banhistas farão como lhes aprouver. Quando a polícia marítima aparecer de fita métrica, as toalhas do povo ajustam-se como uma peça de Tetris. E nem um caso de Covid vai brotar das praias, ou pelo menos da parte regulada das praias, que é a que se vai principalmente violar. O que conta, para o Estado e para o povo, é a coreografia do cumprimento: o Código da Praia, o semáforo da praia, a presença do fiscal, o peso da norma como lembrança do risco.

Qual é a filosofia subjacente? É sobretudo a ideia fatalista de que tudo acontece aos portugueses apesar das regras e planos que congeminaram. Assim, tudo o que sucede é absolutamente incontrolável. Daqui nasce a mentalidade da desobediência: não só da descrença na ordem, mas da necessidade de aproveitar o caos, já que mais nada se aproveita. Foi assim que se festejou o campeonato do Sporting.

Fôssemos mais como os ingleses, mais substantivos e atentos a questões de princípio, e notaríamos que as restrições da época balnear são prédicas de bom-senso, prudentes na pandemia e fora dela. De caminho, recordaríamos até que totalitarismo não se usa no sentido de um Estado todo-poderoso, mas no sentido de ausência de separação entre a vida pública e a vida privada. Se a praia não é um lugar de saúde e de evasão, mas um pretexto para trazer a bota ao encontro do fato de banho, já não é a doença que se combate, mas a responsabilidade retórica pela transmissão. Se ir a banhos se converte num acto político, o Estado não declara apenas que não somos responsáveis (o que até seria justo), mas também que não podemos sê-lo, porque só funcionamos a toque de multa e sanção.

As dunas são como divãs porque é nelas que os portugueses esconjuram uma vida frequentemente miserável, e a confessam a um psicanalista invisível, mas nem por isso inexistente. Ao meu confesso que não esperava, nesta fase da pandemia, ser multado por jogar raquetes numa praia ocupada a 50%, seja lá o que isso quer dizer.

A mensagem é clandestina, mas é clara. Portugal pode estar vacinado, mas ainda não é maior. Cumpre pois anunciá-lo, num letreiro enorme e rebuscado, a todos os ingleses à chegada no aeroporto.