Há que “gastar as solas...”
O Dia Mundial das Comunicações Sociais é a única celebração do género que ficou estabelecida já no Concílio Vaticano II. Ocorreu no último domingo o seu 55.º “aniversário”, e com uma mensagem incontornavelmente... “jornalística”! Passada a ocorrência formal da efeméride, o tema continua a implicar-nos face aos desafios especiais deste tempo — o particular contexto da vida num mundo globalizado e cada vez menos sereno, mais a nova situação pandémica, que vieram reformular fortemente muito do que era a velha atenção e os hábitos adquiridos de uma comunicação social... “normalizada”.
Partindo de uma expressão do evangelho de S. João, “Vem e verás” — “Comunicar encontrando as pessoas onde estão e como são” — a mensagem do Papa Francisco vem explicitar todo um modo de conduta no exercício do jornalismo, desde a “maior capacidade de discernimento” e um “sentido de responsabilidade mais maduro” na difusão e receção de conteúdos, até ao “controlo que podemos conjuntamente exercer sobre as notícias falsas, desmascarando-as”. Daí o sentido do tema deste ano: “Na comunicação, nada pode jamais substituir, de todo, o ver pessoalmente”. Por isso, o Papa questiona o que chama de “eloquência vazia” nas várias esferas da vida pública: mais que os recursos técnicos na comunicação, “é a experiência humana que faz a diferença”, pois há que ir ao encontro da “vida concreta”. Bem ao tom de Francisco, a sua mensagem é o melhor exemplo desta atenção crítica à realidade: “Há o risco de narrar a pandemia ou qualquer outra crise só com os olhos do mundo mais rico”; “Causam impressão, mas sem merecer grande espaço nas notícias, as pessoas que, vencendo a vergonha, fazem fila à porta dos centros da Cáritas”; e há o problema dos “jornais fotocópia” ou dos noticiários “substancialmente iguais, onde os géneros da entrevista e da reportagem perdem espaço”. O Papa critica a informação “pré-fabricada, ‘de palácio’, autorreferencial”. E adverte: “A crise editorial corre o risco de levar a uma informação construída nas redações, diante do computador, nos terminais das agências, nas redes sociais, sem nunca sair à rua, sem ‘gastar a sola dos sapatos’, sem encontrar pessoas ou verificar com os próprios olhos determinadas situações (...) Tornaram-se evidentes, para todos, os riscos duma comunicação social não verificável. Há tempo que nos demos conta de como as notícias e até as imagens são facilmente manipuláveis, por infinitos motivos, às vezes por um banal narcisismo”.
Assim, é por demais certeiro o diagnóstico quanto a algum jornalismo que se faz à nossa volta. Por um lado, a sua importância continua indiscutível, ao trazer à luz muito do que era ocultado ou, apenas, desconhecido: o seu papel nos confinamentos, por exemplo, foi crucial para ativar uma maior cidadania e tornar mais urgentes a solidariedade, as medidas profiláticas, o planeamento da recuperação global. Mas, por outro lado, diariamente se constata a falta de um jornalismo que ouve e vê as pessoas nas suas situações, lá na aflição ou na injustiça onde elas se encontrem, demasiado jornalismo de irrealidade, cómodo na reprodução infinita do oficioso, com pouca problematização das “fontes”, mais os telejornais sem fim repetindo até à exaustão o debitado pelas agências e redes sociais. Antigamente é que era bom? Sim, e não; mas, pelo menos, a “malta dos jornais” sabia de experiência o que era “gastar as solas dos sapatos” para poder dar, mesmo, verdadeiras notícias — e não estatísticas e “presses” — no dia seguinte...
In Memoriam
A morte — que é, com os impostos, a única certeza que temos nesta vida — surpreende-nos sempre. Não sabemos quando vem, e quando vem nunca se espera. Apesar de inscrita na nossa vida desde que se nasce, ela apanha-nos numa inesperada curva da estrada — e ficamos sempre tolhidos de espanto: se não pela nossa própria morte, ao menos pela dos nossos amigos...
Estava o “escrito na areia” (1.ª versão) já na mesa do diretor, quando fomos surpreendidos pela notícia da partida do jornalista Emanuel Correia — o “cocas”, alcunha ternurenta partilhada por todos nós, seus amigos, que pudemos, ao longo de pelo menos três décadas, em contextos e tempos diferentes, com ele viver grandes momentos de trabalho, companheirismo e amizade.
Partilhei profissionalmente com o Correia, como dizíamos, vários anos de trabalho no “velho” Jornal da Madeira. Recordo o seu companheirismo e disponibilidade para o serviço, mais a preocupação de preparar-se bem para enfrentar de modo capaz aqueles trabalhos que se afiguravam mais exigentes. Era, no exercício da sua profissão de jornalista, criterioso e leal, virtudes que hoje não abundam no respetivo “mercado de transferências”. Depois, foi para a agência Lusa, onde exerceu a maior parte da sua vida profissional ativa. Nós, os que continuámos pelos anos adiante a poder ser seus amigos, recordamos, sobretudo, a sua dimensão humana, o trato afável, o gosto da partilha convivial, o sorriso com que sempre nos brindava a todos, e o gosto de viver e fruir quanto possível o lado bom da vida. E assim partiu — quem sabe se, para ele próprio, sem grande surpresa. Mas fica, para todos nós, a grata recordação do “cocas”, jornalista e amigo dos seus amigos: ele era do tempo em que, nessa profissão, era mesmo necessário ver e ouvir e estar atento, e gastar as solas dos sapatos em busca de “vida concreta” à nossa volta! Agora, Correia, terás mais tempo para ler os jornais e revistas que tanto apreciavas...