Análise

De barriga cheia

Por instantes, a infelicidade de algumas posições e declarações públicas indiciam que a ilha hoje visitada pelo Presidente frequente mais parece uma república de bananas. A exigente gestão da pandemia não explica o desleixo e muito menos a facilidade com que se atenta contra a inteligência da cidadania responsável.

A tirada mais abjecta foi arremessada por Rui Barreto que, de barriga cheia, autorizou quem sobre ele escreve a “vomitar”. De facto, há atitudes que enojam, mesmo que nem todas sejam centrais e, muitos menos, centristas.

É o caso das protagonizadas por políticos que ainda acham que lhes devemos pedir licença antes de dar informar a população, obter reacções ou omitir opiniões com base em factos, por muito incómodos que sejam. Das prepotências governativas do género “quer queiram, quer não queiram” em circunstâncias em que os mais avisados recorrem ao diálogo e à negociação. Das hesitações dos decisores públicos que não dominam dossiers e demoram uma eternidade para dar respostas a assuntos que deviam ter na cabeça e na ponta da língua. Da ignorância atrevida presente em comunicados, intervenções parlamentares e actividades partidárias, bem como nos abundantes comentários especializados em coisa nenhuma. Da falta de noção do ridículo dos que reclamam um estatuto que ou nunca foi concedido, ou está em vias de extinção ou já expirou.

Há ainda as encenações patéticas na Educação e sobretudo um descuidado convite de Miguel Albuquerque à investigação jornalística, ao abrir um flanco de consequências imprevisíveis ao desvalorizar o facto do líder do CDS na Madeira, ter ocultado o empréstimo que recebeu de César do Paço na declaração de 2019 entregue no Tribunal Constitucional.

Com as dúvidas assumidas, e que porventura a PGR vai desfazer, motivou uma curiosidade legítima daqueles que, num ápice, passaram a desconfiar do teor da sua declaração depositada junto do mesmo Tribunal. Será que também teve dúvidas ou nunca recebeu dádivas declaráveis?

A lei da transparência obriga, entre outras coisas, ao registo de todos os empréstimos concedidos por “quaisquer pessoas singulares ou colectivas”, pelo Estado ou por bancos, e Rui Barreto não o fez.

Se este articulado gera dúvidas, há políticos madeirense que podem explicar à coligação de interesses quanto custa a distracção. Assim, branquear omissões desta estirpe, como se não houvesse jurisprudência, é de palmatória. Dar a entender que o desconhecimento da lei é salvo conduto é repugnante. Comparar um esquecimento a um roubo era dispensável.

Neste contexto, a 11.ª visita à Região de Marcelo enquanto Presidente da República até pode ser escaldante. Para tal, basta que evite temas que não emocionam as multidões, dividem mais do que unem e não mexem com a vida de cada um de nós. Se é para apimentar o contencioso das Autonomias e manter vivas hostilidades num País uno e indivisível, moderno e com talento para inovar dir-lhe-ão que já demos para esse peditório. Se é para apelar à transparência e à legalidade, para projectar o futuro com mais robustez e oportunidades, de modo a preservar empregos e qualidade de vida, talvez a mensagem passe.

Precisamos que venha com mais tempo, para ouvir os que não fazem política e perceber o alcance de alguns silêncios tácitos. Poucas horas entre nós têm um resultado previsível, logo, deverá daqui sair como veio, por muito que lhe possam dizer que a Madeira exige mais respeito, solidariedade e dinheiro do Estado; que há dossiers pendentes há tanto tempo que se arriscam a cair de podres; que as matérias ligadas à mobilidade, à continuidade territorial, às especificidades da ultraperiferia e às compensações decorrentes da insularidade precisam de cuidados intensivos.

É ponto assente que o Presidente é exímio anotador de reivindicações e comentador na hora do alcance de algumas exigências. O problema é que Marcelo também sabe o que a casa gasta, que quem na ilha exige descentralização ignorou por completo as Câmaras no Plano de Resiliência, que quem reclama mais verbas da República não as distribui de forma equitativa, sendo até devedor e que quem apela a boa gestão de dinheiros públicos é mau aluno, tal o tamanho da dívida ainda colossal e da subversão de prioridades.

Por assim ser, a visita será um bom momento mediático para quem manda e porventura oportunidade para pedidos de desculpa, mas a menos que haja um qualquer milagre, nada de transcendental ocorrerá.