Um leão de loiça
Não era bonito, nunca o teria comprado. A minha devoção ao clube não chega a tanto, mas nunca serei capaz de me desfazer daquele bicho
Eu tenho um leão de loiça na velha casa do Laranjal. O meu pai comprou-o há muitos anos, pouco depois de mandar fazer a estante para os meus livros que, nessa altura, se acumulavam em torres improvisadas no meu quarto. E fez uma grande, que desse para os ainda havia de comprar e ler, mas sobrou tanto espaço que ficou lugar para aquele monstro a imitar uma escultura de bronze e com o emblema do Sporting nos flancos.
Não era bonito, nunca o teria comprado. A minha devoção ao clube não chega a tanto, mas nunca serei capaz de me desfazer daquele bicho. Foi o meu pai que me deu num gesto de carinho quando ambos vivíamos o luto da minha mãe. A morte era uma ferida aberta, era como se ainda estivesse por ali, como se a fosse ver entrar no meu quarto com o pequeno almoço numa bandeja.
O corte fora brutal e, cada um de nós, decidiu sofrer para dentro. Não falámos, nem eu, nem o meu irmão e muito menos o meu pai. No dia a seguir ao funeral fomos trabalhar e lembro-me que, no seu jeito, o meu pai fez o que sabia para nos manter como uma família. O leão do Sporting foi parte desse esforço. Se eu falava tanto do clube, se dava corda às piadas, talvez apreciasse o presente.
O meu pai não sabia que parte do meu entusiasmo era uma forma de gostar. Se ele era do Sporting, então eu também era numa família onde as preferências pendiam todas para o Porto. O meu tio Humberto, o meu primo Vítor, o meu irmão e a minha mãe, todos torciam pelo Porto que, nesses anos, ganhava tudo. É certo que o meu pai percebia pouco de bola, achava sempre que todas as faltas eram a roubar, mas até nisso eu gostava de estar com ele. Não sei bem o motivo, talvez para o defender e apoiar.
E o leão, que fez questão de me dar num dia à noite, encontrou lugar na estante quando transformei a sala das visitas numa espécie de biblioteca. Ficou lá, misturado com revistas velhas, cassetes, fotografias, livros, com parte do que eu era aos 20 e poucos anos. Aquele era o meu lugar quando ficámos só os dois, o meu pai e eu, naquela casa onde, às vezes parecia mentira, a minha mãe não podia estar morta.
Vivíamos a dor pela calada. O meu pai era um homem de outro tempo, não se queixava e eu era nova, demasiado nova para entender toda a dimensão do luto e da perda. O Sporting, que não ganhava um título desde que o Jordão marcara um pénalti ao Marítimo nos Barreiros, unia por ser o nosso clube, por imaginar o que diria a minha mãe que era do Porto e percebia mais de fora de jogo, de cantos e livres do que nós, os que ficávamos sempre em terceiro.