Crónicas

Algumas “cenas”

Realidade aumentada: o serão televisivo de domingo passado faz-nos revisitar aquela “cena” — como dizem os putos — de tirarem da cama um grupo de migrantes em plena noite e após doze horas de trabalho, vão realojá-los algures no Zmar, uma operação digna das melhores “cenas” totalitárias, gê-éne-erres armados a preceito, com cães e tudo, como se ali um punhado de trânsfugas em risco de se escaparem, ei-los que chegam numa camioneta daquelas descontinuadas, de repente a “cena” leva-nos a um filme da guerra fria, mais sombra que luz por entre as árvores, o silêncio escuro cortado por exclamações de residentes, também eles resgatados ao melhor do sono, e agora hirtos de espanto face ao inusitado da “cena”...

Excelente recomeço do Screenings com o “Caros Camaradas!”, magnífico libelo anti-soviético de Andrej Konchalovski, filme que resgata um episódio de greve numa fábrica russa e o massacre que se lhe seguiu: a “cena” dá para o torto, os chefes a tentarem conter a revolta e os tanques já na rua — os soldados são do povo e o povo não atira contra o povo, julgam os grevistas —, mas o “lobo mau” não pode conter a sua natureza profunda, eis atiradores furtivos do KGB a disparar a eito, dezenas de cadáveres pelo chão, o terror e o sangue “encerram” o episódio grevista, os feridos e os mortos dali retirados a toda a pressa, o sangue lavado e as ruas “feitas” de novo, a caça aos cabecilhas cerca ruelas e apartamentos, há que jurar “confidencialidade”, ninguém viu nem ouviu nada, a greve e a repressão nunca existiram, talvez só boatos dos imperialistas, os mortos levados de noite e enterrados em campas de outros mortos em cemitérios distantes, até que a protagonista, quadro político do comité municipal, atingida pela tragédia (a filha grevista) na sua própria família, finalmente “acorda” e faz a mais impertinente das perguntas: “Mas se não crermos no socialismo, em que é que vamos acreditar?”, por ali já ninguém lhe responde, nem é preciso, o episódio nunca aconteceu, apenas se passou em 1962 e viu a luz só 30 anos depois com o fim da URSS, de facto foi a sigla do século: quatro palavras, quatro mentiras, como dizia Castoriadis...

Na lusitânia nada de sangue, só a “cena” alentejana dos Zmares falidos e dos migrantes andrajosos das jornas sem fim, o sono cortado a meio da noite, apesar de tudo a imprensa “falada e escrita” estava lá, estamos em democracia, que diabo, mas há tiques que perduram, quatro da manhã, operar pelo escuro e pela calada sem um grão de registo para a posteridade, a ideia era “desacontecer”, o ministro das polícias é bom nisso, quase “desaconteceram” as famigeradas golas antifogo, ou a porrada mortal no ucraniano Ihor, “cenas” típicas deste fiel e irado servidor do socialismo luso, um bocado desajeitado mas politicamente imunizado, pois então, o nosso Primeiro não tem tempo para bagatelas, aliás ele não viu nem ouviu nada disso, um estadista europeu não se melindra com essas pequenas misérias dos terráqueos, coitados, a vida não sorri a todos, por isso uns são mais iguais que outros, e a verdadeira política com P grande estava no Porto, a Cimeira Social Europeia, os grandes líderes trabalham sempre para o futuro, mesmo para a imortalidade — o resto, aquelas “cenas” com Zmares falidos, máfias domésticas e migrantes escravizados, mais aquele jornalismo “asqueroso” que os galambas do regime tanto gostariam de meter na ordem, talvez pela calada da noite, quem sabe: para tudo isso, apenas o “caixote do lixo da História”...