Do homo sapiens sapiens para o homo economicus
Na sociedade contemporânea o triunfo da economia de mercado é evidente, tendo conferido às sociedades e indivíduos benefícios exponenciais inimagináveis antes da Revolução Industrial. Os conceitos de procura e oferta, eficiência, racionalidade económica, escolhas ilimitadas e crescimento económico contínuo ad infinitum são agora a obsessão, objetivo último e de definição de sucesso individual e coletivo. Tudo pode ser vendido e comprado, ou ser pensado como transacionável, na medida em que os valores do mercado livre se entranharam nas várias dimensões sociais e humanas. Ao invés de mera ferramenta, a economia de mercado passou a constituir um paradigma de credo e doutrina. Do homo sapiens sapiens “evoluímos” para o homo economicus, de economia de mercado para sociedade de mercado.
Urge, por isso, parar, refletir e questionar acerca de que aspetos do nosso funcionamento, enquanto seres sociais, devem priorizar outros valores, mais sustentáveis e éticos. Devemos ser economicistas em relação ao ambiente, permitindo que uma empresa possa poluir mais se pagar mais para isso? Ou deixar que o valor de um cidadão diminua quando aposentado ou desempregado, categorizado como não produtivo e uma despesa social? Que um trabalhador seja apenas mais um item avaliado na equação custo-benefício, facilmente substituído por uma peça de engrenagem nova, logo “melhor”? Que as nossas relações amorosas sejam pautadas pelas inúmeras possibilidades de escolha, pela descartabilidade, pouca profundidade, podendo anular-se a “aquisição” em tempo útil quando se começam a complexificar, e substituí-las sem que para tal se arrisquem muitos “danos”, como numa relação de consumo-custo-benefício? Ou, pelo contrário, devem essas dimensões abarcar os valores e as qualidades complexas, profundas, por vezes difíceis, mas humanas, de como são vividas, e não com a urgência utilitária e frenética que dita a sociedade de mercado?
A verdade é que o comboio segue vertiginoso, e apesar de exemplos de comunidades residentes em Amesterdão, Bruxelas, Filadélfia Portland, começarem a privilegiar modelos económicos mais sustentáveis, procurando encontrar o equilíbrio entre as necessidades sociais básicas e de dignidade para todos (ver o conceito de economia dónute, p. ex.), sem que nesse processo se exceda os recursos disponíveis no planeta, e cada vez mais empresas favorecerem missões, valores e propósitos neste sentido, torna-se premente refletir, no mundo pós-pandémico, sobre que valores queremos para as nossas sociedades, para as ditas dimensões sociais e humanas, e enquadrar o papel, necessário, da ferramenta do mercado na sociedade, para que os valores da criação não dominem o criador.