Cultas, viajantes, artistas e mulheres independentes, netas da escritora e tradutora Matilde Isabel de Santana e V. M. de Bettencourt, a conhecida Viscondessa das Nogueiras, e sobrinhas-netas da romancista Maria do Monte, Maria Celina, Maria das Dores e Matilde foram educadas num ambiente familiar caracterizado pela erudição, abertura ao mundo e sentido de pertença à comunidade. Conscientes do “ser mulher”, e do que isso significava no final do século XIX-início do século XX, consolidam uma nova imagem do feminino – a de sujeitos do seu próprio destino, nas artes como na vida.
A figura mais marcante da vida de Maria Celina (1856-1929), a mais velha das irmãs Sauvayre da Câmara, foi a avó, Viscondessa das Nogueiras, poetisa, escritora, tradutora e figura incontornável da cultura da segunda metade do século XIX, não só pelas suas ligações com outros autores e intelectuais, mas também por ter sido a inspiradora de diversas personalidades da família que deixaram obra relevante para as letras nacionais. O seu Diálogos entre uma Avó e sua Neta – para uso das creanças (1862) estabelece o início de uma comunicação com a neta Maria Celina que esta continuará em De Nápoles a Jerusalém, Diário de Viagem (1899), livro que dedica à avó. Um diálogo de entendimentos, de conhecimento e de profunda preocupação com a educação que fará com que filhos e netas se dediquem às letras e que olhem para a Madeira como lugar e oportunidade de saída para o mundo.
Nascida no Funchal a 14 de março de 1805 e falecida na mesma cidade no ano de 1888, a Viscondessa foi também dinamizadora de salões literários, dando-se com diversos autores e incentivando muitos deles. Por nascimento ligada a uma antiga família da Madeira e casada com Jacinto de Santana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt, agraciado com o título de Visconde das Nogueiras em 1867, foi, como escreveu Alberto F. Gomes, “um espírito superior, de uma cultura pouco vulgar para a época e para o meio” (“Algumas Notas sobre os Poetas das Flores da Madeira”, Das Artes e da História da Madeira, vol. III, n.º 15, 1953, p. 20) que lhe valeu o respeito dos contemporâneos, como Bulhão Pato. Este, amigo de Jacinto Augusto de Sant’Anna e Vasconcelos, filho da escritora, conta, nas suas Memórias, a visita que fez à Viscondessa, referindo as suas qualidades como escritora: “compunha versos, admiráveis de mimo e sentimento. Escrevia prosa adorável. Num meio mais largo teria sido uma escritora de primeira ordem” (Memórias, Homens Políticos, t. II, Lisboa, Typografia da Academia Real das Sciencias, 1894, p. 279). No mesmo sentido se dirigem as palavras de Alberto F. Gomes, que a considerou “exemplo de estreito contacto com o público e de estímulo às senhoras que escreviam nessa época”. Esquecida hoje pela história literária regional e nacional, faz parte do conjunto de escritores que o tempo relegou para o quadro do passado. A sua atuação no campo das letras foi, todavia, muito importante e é essencial considerá-la para melhor compreender o percurso da literatura na Madeira e a escrita de autoria feminina em Portugal.
Mas, as irmãs Sauvayre não tiveram só na avó um exemplo de dedicação às artes: o tio Jacinto Augusto foi poeta e fazia parte do círculo ao qual pertenciam, em Lisboa, Mendes Leal, A. Pedro Lopes de Mendonça, José Maria d’Andrade Ferreira, Luiz de Vasconcelos, António Correia Herédia e Bulhão Pato; a tia-avó, Maria do Monte de Sant’Ana e de Vasconcelos, irmã do Visconde das Nogueiras, colaborava na imprensa, mantinha um encontro regular de letrados em sua casa e dedicava-se à escrita, tendo sido a primeira senhora em Portugal a dedicar-se ao romance histórico.
Maria Celina, inspirada pela ideia de educação cosmopolita da avó e pela voga do grand tour como formação da aristocracia europeia, viaja por vários países, da Irlanda à França, da Itália ao Egito. Afirma diversas vezes a necessidade de conhecer o mundo para melhor compreender o lugar onde se habita e dá como exemplo as senhoras inglesas e americanas que se aventuram sozinhas à descoberta de paisagens, monumentos e povos. Necessidade ainda maior quando se trata da mulher, já que só através do saber e do conhecer pode encontrar um lugar de independência. Em 1899, publica De Nápoles a Jerusalém: Diário de Viagem, no qual, em estilo vivo, atenta ao pormenor, a autora conta, descreve, informa, faz participar o leitor da viagem, emocionando-o e divertindo-o. Impressionada nas suas viagens com os dispensários ou lactários no apoio às crianças, deixa em testamento o n.º 29 da Rua da Mouraria para a instalação de um no Funchal. A escritora obteve considerável notoriedade no meio cultural e na residência que tinha na capital, reunia a alta aristocracia portuguesa em serões onde se discutia literatura, música e a sociedade.
Maria das Dores (1865-1941) e Matilde (1877-1951) dedicaram-se principalmente à música. A última ficou conhecida também pelas artes cénicas, levando ao palco do Teatro várias obras, tendo feito a sua primeira apresentação de produção musical e dramática original, em fevereiro de 1893, na récita de Carnaval realizada no palácio dos Viscondes de Torre Bela.
Durante a visita de D. Carlos e D. Amélia, em 1901, estreou a opereta Dois Dias em Paris, a comédia Morto à Força e o quadro Arraial Madeirense no teatro D. Maria Pia (sala cuja construção tinha sido iniciada com o apoio do irmão João Sauvayre da Câmara, quando este fazia parte do executivo camarário), cujos atores foram a própria autora e uma das irmãs, Maria das Dores, além de várias figuras da elite social madeirense.
O serão teve muito sucesso, tendo tido eco em O Paiz, jornal do Rio de Janeiro com grande tiragem na América do Sul, onde se relatava a subida ao palco da comédia e se considerava “magnífico” o desempenho do grupo de amadores, entre os quais se contavam as Sr.as Câmara, Cabral e Sauvayre. O Conde d’Arnoso, secretário particular do rei D. Carlos I, num artigo que publicou no Diário de Notícias do Funchal, em 24 de Junho de 1901, não poupou elogios a Matilde, declarando a propósito de Arraial Madeirense: “Não se pode ver mais lindo quadro, cantigas mais afinadas, danças de mais graciosos requebros, e como se tudo isso fosse pouco, toda a alma portuguesa se sentia naqueles cantares, naquelas danças, naqueles acordes”.
De Maria das Dores, conhecida como grande executora musical, conhece-se “Inez e Mimi (diálogo)” publicado na Revista Esperança (n.º 24, de 15-02-1926).
Infelizmente, o acervo das obras das duas irmãs, e provavelmente de Maria Celina também, ainda está por publicar. Certamente ajudaria muito à história do teatro e da música na Madeira conhecer melhor o que estas artistas produziram e que marcou, também, a história das mulheres na Madeira e em Portugal. De facto, o seu contributo merece mais do que um lugar de periferia e necessita de ser perspetivado como determinante para a época e para a construção do nosso presente.