Não abram mão do Amor
Num país e num ocidente tão envelhecidos, nós estamos a impor uma mortalidade escondida através do # ficaremcasa cego e presunçoso
Não abram mão do amor. Não abram mão da coragem, diz a canção… Com a Covid familiarizamo-nos com as máscaras cuja lisura encarquilhada substitui a naturalidade das faces.
O que, supostamente, foi adquirindo em segurança foi perdido em expressão.
Agora, à semelhança do que sucede com as mulheres dos países muçulmanos, coagidas a esconder as faces atrás de impenetráveis burkas, aprendemos a olhar bem nos olhos uns dos outros em busca de mais comunicação. Reaprendemos o valor das faces que tanto nos diziam, esses palmos de cara cheios de humanidade.
Reaprendemos a valorizar os passos que dávamos por adquiridos e por onde o vírus ou as leis momentâneas dificultam ou proíbem o livre-trânsito: o espaço das ruas, dos campos, das casas onde mora o calor da amizade, dos restaurantes e cafés onde mora o convívio, dos museus e casas de espectáculos onde mora a Arte – e muitos outros. O vírus ensinou-nos que somos mais ricos, lúcidos, saudáveis e tranquilos do que infectados ou apenas confinados embora cheios de coisas e de dinheiro.
Aprendi, ao longo da vida, que o objectivo da filosofia é o amor e que o conceito mais interessante é o da afinidade. É a afinidade que graças às associações criativas que revelam e garantem uma conformidade entre o sujeito e o objecto, o homem e o mundo, certos fenómenos e certos conceitos, a arte e a natureza, ou, entre os espíritos e os corpos dos seres – configura a experiência humana e lhe oferece a continuidade, uma continuidade admirável, da qual recebemos a felicidade de nos surpreendermos quando sabemos prestar-lhe atenção.
Amor, afinidade, arrebatamento do mundo, que a racionalidade produz do mesmo modo que é seu produto, não se trata de recuperar – tarefa que estaria votada ao fracasso – O “encanto” dos mundos passados, ou de deixar a mágicos charlatões a possibilidade de nos seduzir com a impostura dos seus poderes. Mas já percebemos a dimensão dos riscos em que incorremos ao praticar axiologias intensivas. Ao pretender desenvolver continuamente valores autónomos e, por isso, cada vez mais específicos, sob o pretexto de aperfeiçoar as racionalidades “instrumentais”, os indivíduos instalam-se na ficção de um autocontrol, que apenas tem equivalente na ficção que as sociedades realizam para controlar o mundo. Valores a cada dia mais autónomos e, por conseguinte, nunca partilhados, acumulam handicaps: a bioética, a ecologia, a democracia tentam adornar esta deriva reinscrevendo no centro tanto das reflexões como das acções a necessidade de uma união entre liberdade e responsabilidade. Única via para que se estabeleça a travessia em direcção a um “nós”. Este “nós”, origem da existência possível de valores comuns, é o melhor antídoto contra a indiferenciação entre o povo e a multidão, e garante a elevação da pessoa e o respeito por um mundo em que a vida cresce, morre e renasce.
Só existe desastre para aqueles que se sentem empolgados em se dedicar a remedia-lo, o desastre não é o apocalipse. As crises constituem momentos e não estados. As ordens, os sistemas de valores e de evidências são frequentemente abalados, mas as forças obscuras não aniquilam a esperança.
Um olhar de esperança intuído por uma visão antropológica sobre a vida, devem ser, independentemente da religião, ser tidos em conta na descodificação sobre quem somos e de onde viemos.
A pandemia sendo uma porta para a mudança, não é um ponto de viragem radical. Exemplo disso foi o infeliz aumento da violência doméstica. Nos lares, onde deveria imperar o amor, houve espaço para a contradição. A violência doméstica está presente em diferentes lares, não conhecendo idade, estrato social ou nível de literacia. Pratica-se violência contra mulheres, contra homens, contra crianças, contra idosos… É assustador assistir ao esgrimir do tema pelos meios de comunicação social que já não formam nem informam. O assunto vende e, por isso, lá vão aparecendo exemplos, contactos na primeira pessoa, que nos tocam o coração. A maneira como se tira partido do tema não reflecte uma verdadeira luta contra este mal. Quando tocamos numa ferida deve ser para curar, e não para provocar dor. Se assim for, é perverso.
Nós somos seres emocionais e morais antes de sermos válvulas com fluídos. E esta realidade imaterial da nossa condição humana está a ser esquecida pelas medidas draconianas desta pandemia. Num país e num ocidente tão envelhecidos, nós estamos a impor uma mortalidade escondida através do # ficaremcasa cego e presunçoso da sua superioridade moral. Se há muitos idosos a morrer de Covid, há outros idosos a morrer da cura, de outras doenças que o sistema de saúde, os media e os políticos não querem ver ou simplesmente de solidão. Se não matarmos esta cultura que cobre o toque humano com um manto de culpa arrojada, como tantos já pedem, a nossa terceira idade continuará a ser dizimada pela epidemia da solidão mesmo depois de alcançarmos a imunidade de grupo contra a Covid.
Os homens aspiram a um ideal ou, pelo menos, anseiam por um ideal a seguir. De facto sem um ideal de vida em comum e sem os valores que o realizam não haveria laços que ligassem os homens no tempo. Um grupo sem valores comuns não seria uma sociedade, porque nela faltaria o sentido, a esperança, o futuro. Aí só haveria a força para manter os homens juntos. E a força, concordarão comigo, não defende o laço social.
Os valores são, pois, a expressão de um acordo sobre o modo de realizar objectivos comuns. Não falo das abstracções elaboradas, e longamente trabalhadas, pela reflexão filosófica. Falo dos valores que unem os homens que vivem em comum. Falo de valorações concretas – sobre a boa convivência, sobre o bem comum, sobre o trabalho, sobre a entreajuda e a cooperação, sobre as práticas culturais e os usos tradicionais – valorações que representam a existência de uma sociedade perante os outros grupos e perante a História. Estes valores da vida em comum pacificam a eterna tensão entre a necessidade de vivermos juntos e a vontade de cada um de viver à sua maneira.
Numa das suas últimas obras sobre a crise sanitária que vivemos “Sonhemos juntos”, o Papa Francisco traz-nos uma mensagem de esperança. Vivemos um momento único, a crise da Covid expôs como nunca a crueldade e a iniquidade da nossa sociedade, mas também a resiliência, a generosidade e a criatividade de tantas pessoas, diz o Papa. Com uma franqueza sem precedentes, o Papa Francisco diz, com as crises da sua vida, o fizeram mudar para melhor. Perante a crise temos duas escolhas: voltar a um estado de pré-crise ou, com coragem, aprender, mudar, e emergir melhores do que éramos antes. O Papa Francisco exorta-nos por isso, a não baixarmos os braços, a não permitir que a dor, porque todos passámos, tenha sido em vão. Atrevamo-nos a sonhar. “Temos que redesenhar a economia de tal modo que possa oferecer a cada pessoa o acesso a uma existência digna, e que ao mesmo tempo proteja e regenere a natureza”.
Desta crise podemos sair melhor ou pior. Podemos retroceder ou criar algo de novo. Neste momento, aquilo de que precisamos é da oportunidade de mudar, de criar espaço a fim de que possa surgir esse novo de que necessitamos. É como Deus diz a Isaías: “Vinde, falemos sobre isto. Se estais dispostos a escutar, tereis um grande futuro, mas se vos negais a escutar, sereis devorados pela espada”.
E há tantas espadas a ameaçar devorar-nos…